Acabei de assistir a um vídeo
em que um psicólogo defende a tese de que mente e cérebro são entidades
indistinguíveis. Uma vez que lesões cerebrais são normalmente
acompanhadas de alterações comportamentais, não teríamos mais por que
insistir na crença de que a mente, imaterial, existe à parte do corpo. No entanto, se pararmos
para cerebralizar, digo, pensar bem sobre a questão, podemos nos
embananar com alguns paradoxos interessantes. Por exemplo, se um
neurocientista afirmar que o prazer não é nada senão a atividade de
neurônios do núcleo acumbente, poderíamos concluir que a sensação aprazível é, tal
como os neurônios, úmida e eletricamente carregada? Ou, ao postularmos
que os sonhos são reverberações dos circuitos neurais que trabalharam
durante a vigília, poderíamos saber o que um indivíduo está sonhando ao
inspecionarmos seu cérebro? A despeito dos valiosos estudos em
neuropsicologia, um exame filosófico cuidadoso parece colocar em
suspensão a atraente ideia de que mente e cérebro são a mesma coisa.
Imaginemos o caso estapafúrdio em que Mary, uma cientista, cresceu e
aprendeu tudo sobre a neurofisiologia da visão em um quarto cujos
objetos eram pintados apenas em tons de cinza. Através de livros e de
uma televisão com imagens em preto e branco, ela foi instruída sobre como
diferentes comprimentos de onda excitam o cérebro e nos fazem proferir
frases que descrevem uma variedade de cores – cores que ela jamais viu.
Mesmo com seu vasto conhecimento em neurofisiologia da visão, poderia
Mary aprender algo mais sobre as cores ao sair de seu quarto? Frank Jackson (1982), autor do
"Argumento do Conhecimento", conclui que Mary estaria
conhecendo coisas novas ao experimentar o azul do céu e a vermelhidão dos
tomates. Jackson, para quem o fisicalismo é incompleto, lembra-nos de
que as ciências do cérebro não conseguem descrever "o caráter doloroso
das dores, o caráter de coceira das coceiras, as pontadas de inveja ou a
experiência característica de provar um limão, sentir o cheiro de uma
rosa, ouvir um barulho ou ver o céu". As experiências sensoriais, ou os qualia, não poderiam ser contempladas em uma teoria neurobiológica da consciência. Um pecado.
Thomas Nagel (1974) desenvolveu um argumento diferente para defender ideias semelhantes. Em seu artigo "Como é ser um morcego?", ele afirmou que o fato de um neurocientista conhecer os mecanismos neurais envolvidos na ecolocalização dos morcegos não o permite saber como é ter a experiência de se orientar pelo sonar – ou, de forma mais geral, de como é ser um morcego. O ponto de vista de um morcego, ou a experiência de ser um morcego, não pode ser reduzida a eventos neurobiológicos. Em tom de pessimismo, Nagel aponta que a consciência "faz do problema da relação mente-corpo um problema verdadeiramente intratável".
Vários outros filósofos dedicaram-se a atacar a cada vez mais popular tese de que "a mente é o cérebro". Mas, cabe ressaltar, essas objeções não estão necessariamente associadas à velha crença de que a mente é imaterial e o corpo, material. Seja lá como for, a experiência de ser um morcego não é imaterial, tal como a experiência de sermos nós mesmos não o é. Negarmos a equivalência de mente e cérebro não corresponde a ressuscitarmos o fantasma da máquina. Ao que parece, os paradoxos ontológicos em discussão derivam de um desencontro de perspectivas, quais sejam, a de primeira e a de terceira pessoas. Observar um indivíduo comendo um abacate não é o mesmo que ser um indivíduo comendo um abacate. A perspectiva do observador não abarca todas as propriedades da perspectiva daquele que se comporta, e isto não é resolvido ao descrevermos a cadeia de reações bioquímicas que parte dos receptores da língua e chega aos córtices sensoriais. Novamente, isso não quer dizer que o sabor e a textura do abacate sejam imateriais, e sim que eles não são idênticos aos eventos neurobiológicos.
Ademais, essas objeções não descartam a importância do cérebro para a emergência e a sustentação da consciência. O cérebro é imprescindível para que um organismo possa sentir-se vivo e em atividade, isto é, para que possa expressar uma perspectiva subjetiva de sua relação com o mundo. Para o filósofo John Searle (1998), a maneira como o cérebro "causa" a consciência é o grande mistério a ser desvendado.
Cheguei a pensar que eu me debruçaria sobre essa questão só quando chegasse minha aposentadoria. Mas eu não aguento. O mistério da consciência me provoca nós e aflições que acabam sendo vencidos por seu fascínio. E esse mistério é assaz fascinante porque, contrariamente ao que sugerem alguns neurocientistas, a consciência não é um problema científico trivial. Não estamos querendo explicar um evento natural que se passa diante dos nossos olhos; estamos querendo explicar o processo de termos a experiência de observar e participar de eventos naturais. E, apesar dos bons motivos que temos para crer, meu instinto filosófico não me permite aceitar mansamente a hipótese de que isto, o aroma deste café, o som daquele ventilador, a textura destas teclas, o aperto em meu peito, os tons amarelados deste quarto, enfim, que esta miscelânea de estímulos que dinâmica e imediatamente constituem minha consciência não seja algo mais do que isto: meu cérebro. Mas, se for, e para que possamos efetivamente solucionar o mistério, algo me diz que precisaríamos mudar as regras do jogo.
Pois o jogo da filosofia, cujas regras são rígidas e impiedosas, não admite que concebamos cara e coroa como indistinguíveis. Talvez, como que tentando um caminho do meio, possamos, conforme vêm fazendo alguns, alegar que cara e coroa são duas faces da mesma moeda. Em outras palavras, há os que se contentaram com a seguinte tese: "Estados mentais são estados neurais descritos psicologicamente, e estados neurais são estados mentais descritos neurobiologicamente". Ainda que esse "dualismo de perspectivas" evite as objeções mais triviais – como as que foram levantadas ao longo deste texto –, ele resgata um mistério muito mais antigo: Afinal, se estes estados mentais são a maneira como eu vivencio meus estados neurais, o que realmente está lá fora? E, na medida em que o mundo cognoscível seria arquitetado sob ilusões neurais (cf. Nicolelis, 2011), como eu poderia prover qualquer solidez às minhas teses? Voltaríamos à estaca zero.
No frigir dos ovos, parece não ser muito prudente defender nossas crenças com muita convicção. Pode ser que o problema da consciência seja realmente intratável – ao menos, como sugeri outrora, empiricamente intratável –, bem como que o cérebro seja só uma parte fundamental do que jamais poderemos apreender. Tenho amigos que insistem em dizer que esse papo sobre a consciência é só um pseudoproblema em que inadvertidamente fomos nos meter. Pode ser que eles estejam certos. Mas, por algum estranho motivo, não consigo esperar que cheguem meus sessenta anos para pensar, rever e conversar sobre o caso. E o caso da vez é o de que, conforme as regras da última estação, mente e cérebro continuam não sendo exatamente a mesma coisa.
Referências
Thomas Nagel (1974) desenvolveu um argumento diferente para defender ideias semelhantes. Em seu artigo "Como é ser um morcego?", ele afirmou que o fato de um neurocientista conhecer os mecanismos neurais envolvidos na ecolocalização dos morcegos não o permite saber como é ter a experiência de se orientar pelo sonar – ou, de forma mais geral, de como é ser um morcego. O ponto de vista de um morcego, ou a experiência de ser um morcego, não pode ser reduzida a eventos neurobiológicos. Em tom de pessimismo, Nagel aponta que a consciência "faz do problema da relação mente-corpo um problema verdadeiramente intratável".
Os morcegos podem se orientar no espaço através do "eco" de ondas ultrassônicas que emitem pela boca (ou pela narina, dependendo da espécie). Como seria experimentar a ecolocalização? |
Vários outros filósofos dedicaram-se a atacar a cada vez mais popular tese de que "a mente é o cérebro". Mas, cabe ressaltar, essas objeções não estão necessariamente associadas à velha crença de que a mente é imaterial e o corpo, material. Seja lá como for, a experiência de ser um morcego não é imaterial, tal como a experiência de sermos nós mesmos não o é. Negarmos a equivalência de mente e cérebro não corresponde a ressuscitarmos o fantasma da máquina. Ao que parece, os paradoxos ontológicos em discussão derivam de um desencontro de perspectivas, quais sejam, a de primeira e a de terceira pessoas. Observar um indivíduo comendo um abacate não é o mesmo que ser um indivíduo comendo um abacate. A perspectiva do observador não abarca todas as propriedades da perspectiva daquele que se comporta, e isto não é resolvido ao descrevermos a cadeia de reações bioquímicas que parte dos receptores da língua e chega aos córtices sensoriais. Novamente, isso não quer dizer que o sabor e a textura do abacate sejam imateriais, e sim que eles não são idênticos aos eventos neurobiológicos.
Ademais, essas objeções não descartam a importância do cérebro para a emergência e a sustentação da consciência. O cérebro é imprescindível para que um organismo possa sentir-se vivo e em atividade, isto é, para que possa expressar uma perspectiva subjetiva de sua relação com o mundo. Para o filósofo John Searle (1998), a maneira como o cérebro "causa" a consciência é o grande mistério a ser desvendado.
Cheguei a pensar que eu me debruçaria sobre essa questão só quando chegasse minha aposentadoria. Mas eu não aguento. O mistério da consciência me provoca nós e aflições que acabam sendo vencidos por seu fascínio. E esse mistério é assaz fascinante porque, contrariamente ao que sugerem alguns neurocientistas, a consciência não é um problema científico trivial. Não estamos querendo explicar um evento natural que se passa diante dos nossos olhos; estamos querendo explicar o processo de termos a experiência de observar e participar de eventos naturais. E, apesar dos bons motivos que temos para crer, meu instinto filosófico não me permite aceitar mansamente a hipótese de que isto, o aroma deste café, o som daquele ventilador, a textura destas teclas, o aperto em meu peito, os tons amarelados deste quarto, enfim, que esta miscelânea de estímulos que dinâmica e imediatamente constituem minha consciência não seja algo mais do que isto: meu cérebro. Mas, se for, e para que possamos efetivamente solucionar o mistério, algo me diz que precisaríamos mudar as regras do jogo.
Pois o jogo da filosofia, cujas regras são rígidas e impiedosas, não admite que concebamos cara e coroa como indistinguíveis. Talvez, como que tentando um caminho do meio, possamos, conforme vêm fazendo alguns, alegar que cara e coroa são duas faces da mesma moeda. Em outras palavras, há os que se contentaram com a seguinte tese: "Estados mentais são estados neurais descritos psicologicamente, e estados neurais são estados mentais descritos neurobiologicamente". Ainda que esse "dualismo de perspectivas" evite as objeções mais triviais – como as que foram levantadas ao longo deste texto –, ele resgata um mistério muito mais antigo: Afinal, se estes estados mentais são a maneira como eu vivencio meus estados neurais, o que realmente está lá fora? E, na medida em que o mundo cognoscível seria arquitetado sob ilusões neurais (cf. Nicolelis, 2011), como eu poderia prover qualquer solidez às minhas teses? Voltaríamos à estaca zero.
No frigir dos ovos, parece não ser muito prudente defender nossas crenças com muita convicção. Pode ser que o problema da consciência seja realmente intratável – ao menos, como sugeri outrora, empiricamente intratável –, bem como que o cérebro seja só uma parte fundamental do que jamais poderemos apreender. Tenho amigos que insistem em dizer que esse papo sobre a consciência é só um pseudoproblema em que inadvertidamente fomos nos meter. Pode ser que eles estejam certos. Mas, por algum estranho motivo, não consigo esperar que cheguem meus sessenta anos para pensar, rever e conversar sobre o caso. E o caso da vez é o de que, conforme as regras da última estação, mente e cérebro continuam não sendo exatamente a mesma coisa.
Referências
- Jackson, F. (1982). Epiphenomenal Qualia. Philosophical Quarterly, 32, pp. 127-36. (Também disponível em [http://instruct.westvalley.edu/lafave/epiphenomenal_qualia.htm].)
- Nagel, T. (1974). What is it like to be a bat? The Philosophical Review, LXXXIII, 4, pp. 435-50. (Versão em português disponível em [http://criticanarede.com/men_morcego.html].)
- Nicolelis, M. (2011). Muito além do nosso eu: A nova neurociência que une cérebro e máquinas – e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras.
- Searle, J. R. (1998). O mistério da consciência e discussões com Daniel C. Dennett e David J. Chalmers. São Paulo: Paz e Terra.
Sou amigo do Thales Viana Coutinho e venho conversando com ele a respeito desta questão. Não sou psicólogo, sou programador, mas a vontade de chegar e criar - ou quem sabe participar da criação de - uma inteligência artificial capaz de realizar cognições, de realmente aprender e evoluir, me fez perceber que para que um programador - ou grupo de programadores - possa fazê-lo, obrigatoriamente, tem que se embrenhar no mundo da mente, de como ela funciona e seus mecanismos. E em programação, é bem definida e conhecida por todos as definições de Hardware e Software. Eu hoje vejo nossa mente da mesma forma que um computador: Nos vejo como um poderoso sistema operacional capaz de atuar em nosso Hardware (corpo) a tal ponto de ativarmos glândulas apenas pela imaginação - uma coisa totalmente virtual. Quer um exemplo? Feche os olhos e fique em um ambiente silencioso. Imagine uma cachoeira, visualize a cena, se imagine mechendo na água, imagine o som da água, visualize as gotas por toda parte. Tente sentir o cheiro da água! Se bobear, dá vontade de urinar, um instinto que temos quando estamos diante de muita água. Então! Isso é só "a ponta" da visão que tenho a respeito. Me encontre: Clebermag.
ResponderExcluirCleber, suas ideias parecem ser inspiradas pela metáfora computacional da mente. Estou certo? Mas, para um computador, o que seria algo como "imaginar"? Ou, ainda, o que nos distingue de um computador? Uma vez que os sistemas computacionais foram criados para reproduzir algumas de nossas funções (como fazer cálculos), eu acho mais interessante que a analogia tome o rumo inverso. Por exemplo, poderíamos ver os computadores como sistemas comportamentais, e poderíamos nos perguntar se em algum momento poderemos criar máquinas que se comportam de modos tão complexos como nós.
ExcluirO que acha?
Olá, Daniel.
ResponderExcluirDescobri o seu blog e achei muito interessante. Minha postagem não é exatamente em relação ao tema do post, mas aí vai:
Tenho me interessado pela corrente behaviorista e também pela cognitivista. Vi que você esteve muito tempo interessado pela segunda, onde só depois troucou-a pelo BR/AC. Teria como me explicar as idéias centrais das duas, de maneira não muito complexa? O que te manteve interessado primeiramente pelo cognitivismo? Por que a troca? O que você viu no behaviorismo que pareceu mais coerente e válido que no cognitivismo? Queria muito conseguir elucidar e ter uma perspectiva mais ampla dessas duas correntes. Conseguir fazer uma melhor distinção das idéias centrais. Se puder me explicar isso e expor as razões pelas quais você mudou de idéia, seria muito bom!
Obrigado!
Olá, Anônimo! Já tentei falar algo a respeito uma vez (http://danielgontijo.blogspot.com.br/2012/04/por-que-deixei-de-ser-cognitivista_22.html), mas talvez valha a pena eu tentar organizar tudo em um novo texto. Outra pessoa procurou-me recentemente com dúvidas semelhantes. Portanto, espero em breve tirar umas horinhas para escrever algo a respeito, ok? Continue acompanhando as postagens.
ExcluirAbraço!
Certo!
ResponderExcluirAguardo ansiosamente pelo seu novo texto.
Abraço!
“Novamente, isso não quer dizer que o sabor e a textura do abacate sejam imateriais, e sim que eles não são idênticos aos eventos neurobiológicos.”
ResponderExcluirEntendo isso da seguinte maneira – Ter conhecimento teórico e linguístico dos eventos neurobiológicos é uma coisa. Ser um determinado evento neurobiológico é outra. Nenhum cientista jamais saberá como é ser eu em um momento “x”. A menos que ele se torne biologicamente idêntico ao meu eu desse momento “x”, o que é impossível.
Abraço,
Mário Kistenmacher Rodrigues
Daniel, pelo amor de deus, escreve o texto! haha
ResponderExcluirAbraço.