quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Inteligência Emocional: fascínio, equívocos e controvérsias

No final do ano passado, pouco antes de começar minhas férias, fui a uma livraria procurar algum exemplar que pudesse me distrair durante o verão. Talvez por causa do contato que tive com as obras de Antônio Damásio, fiquei muito atraído pelos livros que tratavam do tema "emoção". Entre alguns sedutores títulos que encontrei, optei por levar o Inteligência Emocional (1995), best-seller do meu xará Daniel Goleman.

Entre diversos achados científicos e inferências dispostos no livro de Goleman, concentrei-me mais em sua proposta de que existem duas mentes, dois cérebros — e dois tipos diferentes de inteligência: a racional e a emocional. Goleman propôs que o empenho de nossa inteligência emocional potencializaria nossa inteligência racional, e procurou demonstrar o quanto a qualidade de nossas relações pessoais e nossas conquistas profissionais e acadêmicas dependem efetivamente da forma como gerenciamos nossas emoções. Aptidões como empatia, autoconfiança e a capacidade de controlar impulsos e emoções perturbadoras seriam efeitos de um manejo emocional eficiente (de uma inteligência emocional bem desenvolvida). Goleman sugere que não há momento em que essas — e diversas outras — aptidões não podem ser de alguma forma reconfiguradas. A psicoterapia seria a ferramenta mais adequada nessa tarefa.

Confesso que me atraí muito pela teoria da inteligência emocional. Cheguei a pensar que grande parte dos problemas encontrados em consultórios de psicologia fossem decorrentes de um quociente emocional "impotente", deficitário. Contudo, depois de acompanhar uma palestra proferida por Carmen Flores-Mendoza(1) na Semana da Psicologia da Universidade FUMEC (2009), minha empolgação começou a se esvaziar. Além de expor resultados de pesquisas que pareciam contestar alguns dos pressupostos de Goleman, Carmen acabou por inferir que as ditas aptidões emocionais estão mais próximas de ser características de personalidade — que atributos como empatia, autoconfiança e capacidade de liderança não são portanto sustentados por uma inteligência gestora das emoções.

Fiquei um pouco inquieto ao ouvir suas conclusões. Naqueles mesmos dias eu estava terminando de escrever um artigo sobre a influência da inteligência emocional no rendimento escolar. No espaço para perguntas, inclinei-me a questioná-la sobre o seu entendimento pela palavra "inteligência", e expus um pouco do que havia aprendido com Goleman e Howard Gardner, autor do livro Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas (1994). (Gardner defende a teoria segundo a qual temos não uma, mas várias inteligências. Essas inteligências seriam relativamente independentes, muito embora modelem-se e combinem-se numa multiplicidade de maneiras adaptativas por indivíduos e culturas [GARDNER, 1994, p. 4].) Se não me falha a memória, Carmen asseverou que para "inteligência" há um só significado no meio científico, e que este equivale a noções de potência, de capacidade, de agilidade no processamento de informação. No ponto de vista de Gardner, entretanto, essa "capacidade" só pode ser considerada uma inteligência caso ela proveja ao organismo recursos que o permitam resolver problemas, adquirir conhecimentos novos e, eventualmente, criar produtos valorizados culturalmente.(2)

Muito embora Gardner não tenha proposto uma inteligência das emoções, duas das sete inteligências eleitas por ele compreendem atributos que influenciaram Daniel Goleman em sua(3) teorização. São elas: inteligência intrapessoal, destinada a distinguir e simbolizar sentimentos e a controlar emoções e impulsos perturbadores; e inteligência interpessoal, que se dirige a identificar motivações, humores e temperamentos de outras pessoas.(2)

A proposta das inteligências pessoais ganha força na medida em que refletimos sobre diversas coisas que fazemos — ou tentamos fazer — rotineiramente. Por exemplo, os contatos sociais trazem-nos, além de outras coisas, a tarefa de decifrar uma miríade de mensagens tácitas oriundas do mundo afetivo de outras pessoas, cabendo-nos posteriormente elaborar e emitir comportamentos socialmente adequados. Julgo como aceitável pensar esses trâmites como sendo problemas a serem resolvidos; mas a tarefa de eleger/verificar quais inteligências estão atuando nessas ocasiões é demasiadamente complicada. Primeiro, os requisitos básicos para atribuir a uma capacidade (ou um conjunto de capacidades) o rótulo "inteligência" não são tão claros — muito menos consensuais. O próprio Gardner complica a tarefa ao sugerir que uma inteligência deve ser capaz de levar as pessoas a produzirem produtos valorizados culturalmente, o que faz com que o problema da inteligência seja discutido por um ponto de vista relativista (a demanda cultural seria determinante na tarefa de eleger inteligências). Segundo, é patentemente difícil demarcar as fronteiras que separam uma inteligência de outra, visto estas modelarem-se e combinarem-se numa multiplicidade de maneiras; e o fato de que cada inteligência lança mão de vários sistemas sensoriais complica ainda mais uma observação limpa de cada uma delas. (A esse respeito, Gardner pontuou que um sistema sensorial, como o sistema afetivo ou o sistema visual, não pode ser considerado uma inteligência per se. Um sistema sensorial funciona como um processador e um provedor de informações, as quais atuam como conteúdo das inteligências.)

Mais luz sobre a inteligência

Atualmente, lendo o livro Como a mente funciona do psicólogo e cientista cognitivo Steven Pinker, tenho dado novos formatos ao meu entendimento sobre o intelecto humano. Segundo Pinker,(4) a mente (ou o cérebro) é constituída por módulos (pequenos computadores) que foram moldados durante a evolução das espécies, "cada qual com um design personalizado que faz desse módulo um perito numa área de interação com o mundo" (p. 32).(5) Como a diversidade de ferramentas dispostas num canivete suíço, a mente compreende uma diversidade de módulos que trabalha conforme os desafios que são impostos a ela. Pinker assevera que esses módulos "são definidos pelas coisas especiais que fazem com as informações à sua disposição, e não necessariamente pelos tipos de informação de que dispõem" (p. 42). Juntos, sua principal função seria "usar conhecimentos sobre como as coisas funcionam para atingir objetivos em face de obstáculos" (p. 202-3), função esta que corresponde ao que denominamos inteligência.

Pinker preconiza que a inteligência é fundamentada por diversos instintos. "Quando tudo ocorre bem, nossos instintos de raciocínio ligam-se formando complexos programas de análise racional" (p. 200). Ele sugere que pensar é, em algum ponto, executar uma regra: uma coisa habitual, a única coisa apropriada e natural a fazer — em suma, um instinto. Mas, para que esses programas de raciocínio funcionem adequadamente, são necessários mecanismos capazes de ajustar e, em certa medida, estabelecer quais são os objetivos a serem cumpridos. Esses mecanismos são as emoções, sem as quais não poderíamos elaborar planos de ação, tomar decisões e agir.

Mas lembremos que o sistema afetivo — ou emocional — atua basicamente dispondo seus recursos (informações afetivas) a uma diversidade de módulos, não sendo portanto uma inteligência independente. Como visto, uma inteligência é o efeito da atuação de uma série de instintos que estruturam um programa mental, o módulo, o qual lança mão de conhecimentos sobre como as coisas funcionam com o propósito de alcançar objetivos. Nesse sentido, a inteligência emocional seria o potencial modular para a resolução de problemas de ordem afetiva, o qual atuaria em toda a diversidade de contextos descrita por Goleman. Mas me parece um pouco arriscado confiar sem ressalvas na proposta de que existe um único módulo resposável pelo ajustamento emocional. Primeiro, caso esse módulo seja de alguma forma lesado, provavelmente todas as aptidões emocionais seriam debilitadas. Segundo, o processamento de informação é mais rápido e eficiente caso seja dividido em diversos departamentos (módulos), e não concentrado num só (ao que parece, a mente como um todo funciona dessa forma). Terceiro, notamos que as pessoas são aptas em algumas aptidões emocionais enquanto em outras, não. Conheço pessoas admiravelmente empáticas que carecem lamentavelmente de autoconfiança. Se todas as aptidões emocionais fossem sustentadas por um módulo específico, aquele cujo efeito chamamos de inteligência emocional, todas estas deveriam desfrutar de um mesmo potencial.

Uma saída para esse embate seria a possibilidade de que uma inteligência não seja sustentada por um único módulo, mas por vários deles. Talvez, da mesma forma como nossas inteligências combinam-se e modelam-se numa diversidade de maneiras, nossos módulos também o façam de modo a arquitetar nosso potencial intelectual. Mas isso suscita outras questões. Habilidades /capacidades distintas necessitam de módulos distintos para operar. Embora habilidades como empatia, controle de impulsos e autoconfiança possam desfrutar de alguns módulos em comum, decerto existem módulos que operam em apenas uma ou outra. Por exemplo, para sermos empáticos contamos com nossa capacidade de reconhecer rostos (o que parece ser feito por um módulo específico), precisamos observar a tonalidade da voz do locutor, seus gestos, movimentos corporais, entre outras coisas. Mas não precisamos de quase nada disso — ou nada! — para sermos autoconfiantes ou controlarmos emoções perturbadoras. Se cada habilidade é tão distinta no que faz, empacotar uma série delas numa ou noutra inteligência arbitrariamente pode fazer com que o conceito de inteligência fique ainda mais vago do que é. Afinal, que "parentesco" teriam a empatia e a autoconfiança a ponto de serem geridas por uma mesma inteligência? Acho muito pouco o fato de serem abastecidas essencialmente — mas não unicamente — por conteúdo de natureza afetiva.

Mas suponhamos que esse amontoado de habilidades seja tomado como uma inteligência. Ficamos tentados a avaliar essa nova inteligência, não é? Foi o que Goleman tentou fazer. Ele esboçou um teste de QE (quociente emocional) no qual estão dispostas questões através das quais todas as aptidões emocionais podem ganhar forma e ser avaliadas. Mas o que esse teste parece fazer, talvez tão toscamente quanto os testes de QI, é avaliar potenciais distintos sendo expressos numa diversidade de questões e fundi-los numa espécie de fator geral de inteligência (emocional, no caso). Ou seja: esse teste parece estar avaliando capacidades como controlar impulsos, conhecer a si próprio, ser perseverante, autoconfiante, entre outras, e tirando delas uma média que equivaleria ao "poder" da inteligência responsável por coordená-las — a inteligência emocional. Esse tipo de nivelamento faz perder dados interessantes sobre a pessoa que está sendo avaliada, entre eles degraus que podem separar quilometricamente o potencial de habilidades distintas. Caberia aqui o exemplo que citei sobre uma pessoa fantasticamente empática mas lamentavelmente carente em autoconfiança. Um teste de QE provavelmente faria vista grossa para essa discrepância, importando-se exclusivamente em tirar uma média de tudo o que foi avaliado.

Feitas as observações e reflexões anteriores, eis o que me soa mais razoável. Em vez de a inteligência emocional ter evoluído como um pacote completo de pequenas habilidades que tratam dos problemas de ordem afetiva, parece mais lógico que a seleção natural tenha ensejado evoluções graduais e singulares dos inúmeros módulos que estruturam as aptidões emocionais. Se este detalhe decisivo estiver correto, não há por que elegermos uma inteligência específica para as emoções; poderíamos, não obstante o trabalho, dizer que temos uma inteligência para cada uma das referidas aptidões — que talvez nem mereçam o rótulo "emocionais". Ou até poderíamos, segundo o que tenho pensado, mudar o conceito de inteligência.

IE e características de personalidade

Conforme me lembro, Carmem afirmou em sua palestra não haver correlações significativas entre as pontuações de QI e QE de uma mesma pessoa — mas que, em vez disso, há correlações interessantes entre resultados de QE e de testes de personalidade. A primeira constatação contesta o pressuposto de Goleman de que nossas duas inteligências, a emocional e a racional, auxiliariam-se e estariam comparavelmente desenvolvidas.

Vejamos o que consta alguns dos itens do teste de QE projetado por Goleman: "Sei esperar pelos elogios ou gratificações quando alcanço meus objetivos"; "Quando estou ansioso em relação a um desafio, como falar em público ou fazer um teste, tenho dificuldade de me preparar adequadamente"; "Em vez de desistir diante de obstáculos ou decepções, eu permaneço otimista e esperançoso". As opções a serem marcadas são "sempre", "normalmente", "às vezes", "raramente" e "nunca". Pelo bom senso, essas perguntas assemelham-se mais a um questionário de personalidade do que a um teste que avalia uma inteligência. Não me espanta muito que Carmen e cols. tenham encontrado significativa proximidade entre esse tipo de teste e testes de personalidade — embora no dia da palestra eu tenha me assustado! Poderíamos encontrar duas saídas estranhas para esse problema: concordar que a personalidade é uma espécie de efeito global das inteligências ou, pior, que tudo, tudo o que o cérebro produz é inteligência.

Por outro lado, parece coerente a proposta de que a mente é constituída por diversos programas especializados em lidar com problemas específicos; e isso implica que uma porção desses programas, tenho pensado, seja responsável por dar forma a coisas complexas como a personalidade. Não que a personalidade venha a ser considerada uma inteligência! Na verdade, penso que a função do módulo não seja necessariamente produzir inteligência. Há várias outras coisas em função das quais um módulo atua. Reconhecer rostos é um bom exemplo, e traduzir em sentimentos as emoções corporais talvez também o seja.

Seja como for, personalidade não é nem de longe meu tema de maior domínio. No mais, resta-me terminar de ler o livro de Pinker e buscar estudar mais sobre a teoria dos módulos mentais.


Notas e referências

(1) Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
(2) GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.
(3) Na verdade, a teoria da Inteligência Emocional foi primeiramente proposta pelos psicólogos John Meyer e Peter Salovey — mas Goleman foi quem compilou uma série de pesquisas cujos resultados endossaram seus pressupostos.
(4) A proposta dos módulos mentais foi aventada pelo antropólogo John Tooby e pela psicóloga Leda Cosmides, ambos "partidários" da psicologia evolucionista.
(5) PINKER, Steven. Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Um comentário:

  1. Complemente seu passeio pela inteligência lendo "a falsa medida do homem" do Gould. Por enquanto, a única certeza que se tem nessa literatura toda (apesar de todos os escores, ressonancias magnéticas e engenharias reversas) é que inteligência é o que os testes medem, hehe.
    boa sorte

    ResponderExcluir