terça-feira, 26 de março de 2013

O cérebro e o behaviorismo radical (parte 2)

No primeiro texto desta série, critiquei a alegação de que o modelo behaviorista clássico de explicação do comportamento, a tríplice contingência (estímulo, reposta e consequência [S:R-C]), "coloca o cérebro entre parênteses". Como procurarei novamente demonstrar, é possível considerar a atividade do cérebro em uma contingência de três termos, embora o behaviorista raramente o faça. Mas, afinal de contas, ele deveria fazer isso? Se deveria, e se o modelo SORC não precisa ser adotado, como seria uma "versão neuropsicológica" da tríplice contingência?

O modelo de análise SORC (Haase, 2011) é composto pelo estímulo antecedente (S), as respostas cerebrais (O), o comportamento observável (R) e uma consequência (C).

A neuropsicologia propõe-se a estudar as relações do cérebro (neuro-) com a mente e o comportamento (-psicologia). Por isso, um teste neuropsicológico é um instrumento que fornece dados sobre esses três domínios: cérebro, mente (ou os processos psicológicos) e comportamento (ou as ações observáveis de um indivíduo).(1) O Winconsin Sorting Card Test (WSCT), por exemplo, mede (entre outras coisas) tanto a flexibilidade psicológica/comportamental como a integridade do córtex pré-frontal. Ao lançar mão do WSCT, o neuropsicólogo pode partir dos dados comportamentais para inferir os funcionamentos psicológico e pré-frontal de um indivíduo, embora ele possa também partir dos dados neurológicos (como uma lesão detectada numa tomografia computadorizada) para verificar os prejuízos psicológicos e comportamentais esperados. Nas mãos de um psicólogo sem formação em neurociência, os testes neuropsicológicos teriam alguma utilidade?

Mesmo que não sejam construídos primordialmente para abordar questões neurobiológicas, é indubitável que os testes psicológicos podem fornecer dados sobre o funcionamento cerebral. Esses testes não são considerados neuropsicológicos apenas em razão da perspectiva de análise utilizada pelos psicólogos: a perspectiva psicológica/comportamental. Se são encontradas relações interessantes entre o desempenho em um teste psicológico e o funcionamento cerebral, podemos passar a concebê-lo como um instrumento neuropsicológico (o que parece ter acontecido com o Dígitos e o Semelhanças, subtestes do WAIS/WISC-III). Mas nada impede que um psicólogo use um instrumento neuropsicológico para avaliar exclusivamente os domínios da mente e do comportamento (aberto). Sem fazer referência ao córtex pré-frontal, esse psicólogo poderia avaliar a impulsividade e a tomada de decisão de seu cliente com o Continuous Performance Task e o Iowa Gambling Task, respectivamente. Impulsividade e tomada de decisão são fenômenos psicológicos/comportamentais, e seu estudo e avaliação não precisam necessariamente estar relacionados ao cérebro.

Ao colocar o cérebro entre parênteses, o psicólogo não está negando sua participação nos fenômenos comportamentais. O biólogo pode fazer o mesmo com os fenômenos químicos ao estudar processos biológicos, e o sociólogo pode fazer isso com os fenômenos psicológicos ao estudar fenômenos sociais. No entanto, estudos biológicos que consideram as minúcias dos processos químicos podem ser denominados bioquímicos, e estudos psicólogos cujas análises consideram as perspectivas psicológica e cerebral podem passar a ser considerados neuropsicólogos. Esse é o ponto em que as linhas se cruzam; esse é o campo da interdisciplinaridade.

A interdisciplinaridade científica é desejável por diversas razões, mas isso não dissolve a independência de cada ciência. Pelo que entendo, uma ciência é independente à medida que estabelece seu objeto de estudo particular e dispõe de métodos próprios para estudá-lo -- podendo então compreender seus processos, prevê-los e alterá-los. Assim, o psicólogo que lança mão de testes para avaliar a mente e o comportamento está gozando de sua "independência disciplinar", e isto está longe de configurar um problema. Um problema para a psicologia em geral seria evitar se envolver com as ciências do cérebro. Entretanto, vemos através da Neuropsicologia Cognitiva, da Análise Biocomportamental e da Neuropsicanálise que os cognitivistas, os behavioristas e até mesmo os psicanalistas estão se esforçando para sair de seus guetos. Como costumo assinalar, creio que estabelecer esses diálogos seja importante para garantir o desenvolvimento e a sobrevivência de uma abordagem.

O cérebro e o analista do comportamento

A atuação do analista do comportamento não precisa estar ancorada na neurociência. Entender razoavelmente o funcionamento do cérebro poderá eventualmente ajudá-lo a tomar decisões importantes nos contextos clínico e educacional, por exemplo, mas isso não o obriga a preencher suas análises com variáveis neurobiológicas. Em vez destas, uma tríplice contingência típica é composta por variáveis ambientais (antecedentes e consequências) e por respostas abertas (ações) e encobertas (sentimentos e processos intelectuais) de um indivíduo. Na maioria dos casos, esses componentes de análise são o bastante para que suas intervenções sejam implementadas e para que suas metas terapêuticas sejam alcançadas.

Quando um behaviorista se debruça sobre a neurobiologia do comportamento, ele está começando a se comportar como um neuropsicólogo, ou talvez como um analista biocomportamental. Entretanto, se ele decidir estudar e considerar o cérebro em suas análises, ele não precisará abrir mão da tríplice contingência. Em vez disso, ele poderá preencher seu segundo termo (R) com as variáveis neurobiológicas, preferencialmente ao lado das respostas tipicamente consideradas. Ademais, o primeiro e o terceiro termos (S e C) poderão ocasionalmente se referir aos estímulos característicos de um teste neuropsicológico.

A tríplice contingência (S:R-C) pode comportar respostas neurobiológicas paralelamente (/) às respostas (abertas e encobertas) tipicamente consideradas.

Colocar esses dois grupos de variáveis lado a lado é importante por pelo menos três motivos: 1) é patentemente incorreta a noção de que a atividade do cérebro causa o comportamento encoberto (planejar, sentir medo, decidir etc.); 2) é aparentemente insustentável a redução do último ao primeiro; e 3) o funcionamento neural é um comportamento como qualquer outro. Desenvolvi brevemente o primeiro e o terceiro pontos no primeiro texto desta série, e acho que será importante eu dizer alguma coisa sobre o segundo.

Dividir esses dois grupos de variáveis não é o mesmo que pressupor que suas naturezas são distintas. Adotar um dualismo de perspectivas (a objetiva e a subjetiva), e não um dualismo de substâncias (a material e a imaterial), é uma postura epistemológica complexa e às vezes controversa, mas pode evitar a geração de alguns problemas. Como já discuti noutro lugar, não faz muito sentido afirmar que o cérebro percebe, planeja e toma decisões quase na mesma medida em que não faz sentido dizer que uma mão é agressiva e que o motor de um carro é veloz. Skinner diria que não é o cérebro quem faz essas coisas, e sim a pessoa; e eu acrescento que, se não assumíssemos a perspectiva dessa pessoa, não faria muito sentido noções como sonho, planejamento e decisão -- e nem qualquer outra noção comportamental que permeie a perspectiva subjetiva.(2) Em postagens futuras, pretendo desenvolver essa ideia em pormenores.

Por mais que o cérebro possa parecer um bicho de sete cabeças -- ou um órgãos de sete sistemas --, não há nada que ocorra em suas entranhas que não possamos, a princípio, enxertar numa tríplice contingência (o modelo SORC é dispensável). O analista do comportamento não precisa, em boa parte de suas atuações, fazer referência às condições cerebrais de seus clientes. No entanto, isso não quer dizer que conhecer a perspectiva neurobiológica do comportamento encoberto seja irrelevante. Pelo contrário, esse conhecimento pode ser decisivo na condução e/ou encaminhamento de alguns casos e é imprescindível para os analistas do comportamento que desejam dialogar com a neurociência.


Notas

(1) Essa é a maneira tradicional de se descrever o objetivo da neuropsicologia. O behaviorista radical médio possivelmente apresentará algum incômodo com respeito a essa definição de comportamento e à postulação de uma mente (ou de seus processos). 

(2) As discussões recentes que travei com meu xará Daniel Grandinetti foram importantes para eu perceber que muitos behavioristas radicais não percebem ou não tratam essas duas perspectivas de análise com seriedade. Para compreender melhor o que alguns teóricos denominariam "problema da consciência", veja "Consciência verbal, não-verbal e fenomênica: uma proposta de extensão conceitual no behaviorismo radical" (Zilio, 2011).

2 comentários:

  1. Daniel, um post antiguinho meu falando sobre coisas parecidas

    http://funcionalanalise.blogspot.com.br/2011/04/o-cerebro-digo-o-organismo-para-o.html

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  2. Muito esclarecedor seu post!

    http://leticiapsicologa.blogspot.com

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