quinta-feira, 18 de julho de 2013

É possível uma ciência da mente?

Há cem anos atrás, John B. Watson (1913/2008) teve seu impactante artigo "A Psicologia como o behaviorista a vê" publicado. Também conhecido como "Manifesto Behaviorista", seu texto continha críticas contundentes à introspecção, método pelo qual pretendia-se estudar cientificamente a mente -- ou a consciência -- humana. Entre outros motivos, a falta de consenso entre observadores e a limitada utilidade de seus resultados desencorajaram o uso do método introspectivo. Se a proposta de se estudar cientificamente a experiência mental não se sustentava, caberia à Psicologia adotar o comportamento como objeto de estudo. As coisas iam bem -- para os behavioristas -- até pouco depois da metade do século passado, quando a denominada "revolução cognitiva" resgatou a mente do limbo. A metáfora computacional e o estudo do cérebro poderiam fundamentar uma nova ciência da mente, e o behaviorismo passaria a ser retratado como uma doutrina obsoleta.


Enquanto eu fazia especialização em Neurociências, não ouvi questão mais complicada do que esta: "O que é a mente?". Recentemente, após eu fazer uma apresentação sobre Neuropsicologia e Filosofia da Mente, fizeram-me a mesma pergunta. Eu me arrisquei a responder mais ou menos assim:
Em uma breve pesquisa que fiz, observei que as pessoas normalmente usam as palavras "mente" e "mental" quando querem se referir ao pensamento ("Sua mente é cheia de bobagens"), a intenções ("Estou com isso em mente") e ao raciocínio ("Estou com a mente cansada; não consigo acompanhar suas ideias"). Coisas e eventos que podem ser observados por todos não pertenceriam ao reino da mente. "Mentais" seriam as experiências imaginárias (sonhos, planos, objetivos etc.), as quais são evidentemente distintas das que temos com o ambiente compartilhado.
Por constatarmos que temos um acesso privilegiado a coisas e eventos que ocorrem a despeito dos outros, podemos querer distinguir o real do imaginário, o físico do psicológico e até mesmo o natural do espiritual. Se se resolve sustentar que esse ambiente privado é constituído de cópias, imagens ou representações de coisas do mundo, já temos por onde começar uma ciência da mente.

Mas o mental pode ir além. Qualquer experiência que podemos ter com o mundo, mesmo as compartilhadas com outros indivíduos (ver um pernilongo, ouvir uma sinfonia e sentir o cheiro do café, por exemplo), podem ser entendidas como experiências mentais. "Mente" seria o conjunto de tudo aquilo que percepcionamos.  E, ao considerarmos a ideia de que nossas experiências e comportamentos são causados também por fatores ocultos, podemos querer distinguir os processos mentais conscientes dos inconscientes. Até onde percebo, os psicólogos tendem a adotar essa versão mais estendida do conceito de mente.

Para simplificar o problema que estou levantando, deixemos o inconsciente de lado. Concebamos "mental" como qualquer vivência consciente, ou como qualquer experiência de um sujeito em contato com seu ambiente ou com elementos de sua imaginação. Nesse sentido, uma ciência da mente seria o mesmo que uma ciência da consciência, e sua agenda básica poderia ser estudar processos como a percepção, a retenção de informações na memória temporária e o planejamento.

Se vocês concordarem que boa parte dos estudos científicos em Psicologia tem girado em torno de fenômenos da consciência, poderão também concordar que parte da crítica de Watson à Psicologia do início do século passado não perdeu sua validade. No final das contas, cientistas da mente estão interessados em compreender, prever e explicar uma variedade de experiências subjetivas, e isto é muito mais controverso do que costumamos admitir.

Em seu livro Rápido e devagar: duas formas de pensar, Daniel Kahneman (2011) faz um breve relato de seus curiosos estudos da mente humana através das pupilas. Seguindo os passos do psicólogo Eckhard Hess, ele afirma que as pupilas são como "janelas para a alma". Ao verificar que os participantes de seus experimentos tinham suas pupilas dilatadas ao serem submetidos a tarefas numéricas difíceis, Kahneman chega a dizer que "os dados de pupila correspondiam precisamente à experiência subjetiva" (p. 44). Em outras palavras, o "esforço mental" podia ser inferido -- para não dizer visto -- a partir do comportamento dos olhos. Mas, afinal, é possível demonstrarmos a relação de alguma variável mental com variáveis observáveis?

Está claro que Kahneman não demonstrou qualquer coisa sobre "esforço mental". O que podemos genericamente concluir com seus experimentos é que a resposta pupilar varia conforme certas características de tarefas numéricas. A não ser que um cientista esteja estudando suas próprias experiências, os fenômenos da consciência não podem ser empiricamente investigados. Mesmo quando os neurocientistas analisam o cérebro humano, não há processo mental que possa ser detectado. A partir de certos comportamentos (do cérebro ou de um indivíduo como um todo), o cientista simplesmente infere a existência de certos estados mentais. Erick Kandel não acertou ao dizer que os processos mentais estão para o cérebro assim como o andar está para as pernas (Kandel, 2006). Uma "nova ciência do cérebro" não pode se passar por uma "nova ciência da mente".

Mas a impossibilidade de se verificar estados mentais em outros indivíduos não descarta sua existência. Nem Watson afirmou isso. Eu não preciso provar para mim mesmo que sou consciente: eu sei que existo; eu sinto minha existência. E temos bons motivos para crer que outros humanos, e quiçá muitos outros tipos de animais, são conscientes. A questão em jogo não é se outros seres são conscientes, e sim se podemos estudar cientificamente algo a que presumivelmente nunca teremos acesso.
John B. Watson (1878-1958)

Diferentemente de Watson, eu não acho que devemos excluir a consciência da Psicologia. O pressuposto da consciência é pragmaticamente importante. Supor ou considerar que meu leitor possui crenças, sentimentos e propósitos faz toda a diferença. Nenhum behaviorista contemporâneo nega isso. Contudo, admitir a importância de pressupostos não implica em podermos estudá-los cientificamente. Embora o determinismo -- que sustenta que os eventos são determinados, e não aleatórios -- seja um pressuposto imprescindível para se fazer ciência, ele não pode ser cientificamente comprovado. Tal como o determinismo, o problema da mente ou da consciência é fundamentalmente metafísico.

O ponto é que, ao nos depararmos com o comportamento complexo, quase sempre recorremos ao mentalismo(1) para atribuí-lo algum sentido.(2) Compreendemos melhor o comportamento alheio ao inferirmos a perspectiva alheia, e isto normalmente significa nos colocarmos imaginariamente no lugar daquele que se comporta diante de nós.(3) Isso me faz pensar que, se não for mesmo possível uma ciência da mente, não devemos por isso descartar o mentalismo. Conforme sugeri recentemente (Gontijo, 2013), a perspectiva mentalista/subjetivista nos ajuda a interpretar o que estudamos empiricamente em uma ciência do comportamento. Se, como Thomas Nagel (1974) brilhantemente argumentou, não podemos saber como é ser um morcego, estamos em condições razoáveis para imaginar como é ser outro humano. E adotar a perspectiva alheia é uma boa estratégia para termos uma ideia de quais variáveis afetam seu comportamento. Podemos não ser capazes de demonstrar empiricamente que a dor, enquanto uma sensação, induz uma série de respostas observáveis (gritar, chorar e cuidar de um membro ferido, por exemplo), mas podemos procurar por seus presumíveis estados corporais correlatos e pelas variáveis ambientais que a induz. O mesmo pode ser dito sobre crenças, raciocínio e tomada de decisões.

Mais algumas palavras

A exposição acima é uma síntese das ideias que venho formulando recentemente, e ela demonstra meu palpite atual sobre se é possível sustentarmos uma ciência da mente. Meu pessimismo sobre tal empreitada diz respeito à impossibilidade de demonstrarmos qualquer relação empírica entre eventos mentais e eventos observáveis. Uma objeção recentemente feita a esse argumento refere-se ao fato de que muitos objetos e eventos de ciências rigorosas como a física são igualmente inferidos. A força da gravidade é um ótimo exemplo. Embora não possamos observar a força que faz com que os objetos se atraiam, diz-se que os físicos a estudam desde as formulações seminais de Isaac Newton. Minha tréplica é simples: o fenômeno que é cientificamente abordado pelos físicos é a atração entre corpos -- ou o comportamento de um corpo em relação ao outro --, e não a força que presumivelmente os faz atrair. A força gravitacional é uma inferência que dá sentido ao estudo da relação entre corpos e é justificada em função de nossas observações, mas não é um objeto direto(4) de estudo. O mesmo raciocínio se aplica ao estudo dos processos mentais (lembrar da voz do padre, planejar um movimento e sonhar, por exemplo).

Eu não duvido de que haja outros bons argumentos contra minha posição atual, e eu ficarei contente de os conhecer. Por exemplo, poderíamos estabelecer melhor as características daquilo que aceitamos ser um objeto ou evento cientificamente tratável, discutindo também aquilo que entendemos por ciência. Sei que posso estar me precipitando ao publicar os passos iniciais de minhas elucubrações, mas eu não vejo melhor maneira de as modelar do que as divulgando de alguma maneira.

Por fim, entre o melhor e o pior de John B. Watson, sua crítica a uma "Psicologia da Consciência" está longe de ser obsoleta. O estudo do comportamento continua sendo "um meio para um fim" -- supõe-se a mente pelas respostas de um indivíduo --, mesmo que a empreitada mentalista não tenha gerado metade do que almejam cientistas, psicólogos e consumidores. Deixar a mente -- enquanto o comportamento sob o ponto de vista daquele que se comporta -- escorrer pelo ralo certamente não é uma boa ideia, mas trazê-la para o centro do palco é como levar um surdo à ópera.


Notas

(1) Não estou usando o termo "mentalismo" enquanto uma teoria causal (sentido bastante utilizado pelos behavioristas radicais), e sim enquanto uma "linguagem subjetivista", isto é, enquanto um conjunto de termos relacionados a conteúdos e processos da mente/consciência.

(2) Usar o mentalismo como um "atribuidor de sentido ao comportamento" é uma ideia derivada de algumas críticas que meu amigo Daniel Grandinettti faz ao behaviorismo radical. Por isso, devo creditá-lo por parte das ideias que venho desenvolvendo.

(3) Para uma discussão sobre uma perspectiva behaviorista sobre a consciência, ver Zilio, D. (2011). Consciência verbal, não-verbal e fenomênica: uma proposta de extensão conceitual no behaviorismo radical. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, vol. 13, 4-19.

(4) Talvez possamos aceitar a existência de dois tipos de objeto de estudo na ciência: um direto e um indireto. Objetos diretos seriam aqueles que podemos submeter a testes empíricos, e objetos indiretos, aqueles cuja existência só podemos inferir e justificar a partir de dados fornecidos pelos objetos diretos. A força da gravidade e a mente seriam objetos indiretos, e o comportamento dos corpos e de indivíduos, objetos diretos.

Referências

  • Gontijo, D. F. (2013). Mente, cérebro ou comportamento? A Filosofia socorre a Psicologia. Apresentação de trabalho no III Congresso Integrado de Ensino e Pesquisa da Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí.
  • Kahneman, D. (2012). Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva.
  • Kandel, E. R. (2009). Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Nagel, T. (1974). What is it like to be a bat? Philosophical Review, 83, 435-450.
  • Watson, J. B. (2008). A psicologia como o behaviorista a vê. Temas em Psicologia, vol. 16, 289-301. Artigo originalmente publicado em Psychological Review (1913), 20(2), 158-177.

6 comentários:

  1. Creio dar um tese só esta sua excelente passagem: "Contudo, admitir a importância de pressupostos não implica em podermos estudá-los cientificamente. Embora o determinismo -- que sustenta que os eventos são determinados, e não aleatórios -- seja um pressuposto imprescindível para se fazer ciência, ele não pode ser cientificamente comprovado. Tal como o determinismo, o problema da mente ou da consciência é metafísico -- e, portanto, filosófico."

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    1. Bacana, Nivaldo! Confesso que ainda preciso muito estudar epistemologia, e eu não vou achar ruim se você puder me fazer algumas indicações de leitura...

      Abraço!

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  2. Muito legal Daniel! Parabéns!

    Tem um professor de filosofia de Oxford que tem uns videos excelentes sobre mind, brain and free will, no youtube, Richard Swinburne o nome dele. Vale a pena!

    Abs

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  3. Muito legal Daniel!
    Tem um professor de filosofia de Oxford que tem uns videos excelentes sobre o assunto no youtube, Richard Swinburne o nome dele. Vale a pena!

    Abraço

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  4. Faltou nesse texto um dos maiores nomes mundiais quando se fala em consciência: Antônio Damasio. Apenas com a leitura do seu primeiro livro "O erro de Descartes" já será possível abordar esse assunto do texto todo de outra maneira.

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    1. Já li a obra do Damásio, Júlio, e gosto muito do que e de como ele escreve. Mas em que sentido exatamente você acha que as ideias dele poderiam dar um novo norte ao meu texto?

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