
Thomas Nagel (1974) desenvolveu um argumento diferente para defender ideias semelhantes. Em seu artigo "Como é ser um morcego?", ele afirmou que o fato de um neurocientista conhecer os mecanismos neurais envolvidos na ecolocalização dos morcegos não o permite saber como é ter a experiência de se orientar pelo sonar – ou, de forma mais geral, de como é ser um morcego. O ponto de vista de um morcego, ou a experiência de ser um morcego, não pode ser reduzida a eventos neurobiológicos. Em tom de pessimismo, Nagel aponta que a consciência "faz do problema da relação mente-corpo um problema verdadeiramente intratável".
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Os morcegos podem se orientar no espaço através do "eco" de ondas ultrassônicas que emitem pela boca (ou pela narina, dependendo da espécie). Como seria experimentar a ecolocalização? |
Vários outros filósofos dedicaram-se a atacar a cada vez mais popular tese de que "a mente é o cérebro". Mas, cabe ressaltar, essas objeções não estão necessariamente associadas à velha crença de que a mente é imaterial e o corpo, material. Seja lá como for, a experiência de ser um morcego não é imaterial, tal como a experiência de sermos nós mesmos não o é. Negarmos a equivalência de mente e cérebro não corresponde a ressuscitarmos o fantasma da máquina. Ao que parece, os paradoxos ontológicos em discussão derivam de um desencontro de perspectivas, quais sejam, a de primeira e a de terceira pessoas. Observar um indivíduo comendo um abacate não é o mesmo que ser um indivíduo comendo um abacate. A perspectiva do observador não abarca todas as propriedades da perspectiva daquele que se comporta, e isto não é resolvido ao descrevermos a cadeia de reações bioquímicas que parte dos receptores da língua e chega aos córtices sensoriais. Novamente, isso não quer dizer que o sabor e a textura do abacate sejam imateriais, e sim que eles não são idênticos aos eventos neurobiológicos.
Ademais, essas objeções não descartam a importância do cérebro para a emergência e a sustentação da consciência. O cérebro é imprescindível para que um organismo possa sentir-se vivo e em atividade, isto é, para que possa expressar uma perspectiva subjetiva de sua relação com o mundo. Para o filósofo John Searle (1998), a maneira como o cérebro "causa" a consciência é o grande mistério a ser desvendado.
Cheguei a pensar que eu me debruçaria sobre essa questão só quando chegasse minha aposentadoria. Mas eu não aguento. O mistério da consciência me provoca nós e aflições que acabam sendo vencidos por seu fascínio. E esse mistério é assaz fascinante porque, contrariamente ao que sugerem alguns neurocientistas, a consciência não é um problema científico trivial. Não estamos querendo explicar um evento natural que se passa diante dos nossos olhos; estamos querendo explicar o processo de termos a experiência de observar e participar de eventos naturais. E, apesar dos bons motivos que temos para crer, meu instinto filosófico não me permite aceitar mansamente a hipótese de que isto, o aroma deste café, o som daquele ventilador, a textura destas teclas, o aperto em meu peito, os tons amarelados deste quarto, enfim, que esta miscelânea de estímulos que dinâmica e imediatamente constituem minha consciência não seja algo mais do que isto: meu cérebro. Mas, se for, e para que possamos efetivamente solucionar o mistério, algo me diz que precisaríamos mudar as regras do jogo.
Pois o jogo da filosofia, cujas regras são rígidas e impiedosas, não admite que concebamos cara e coroa como indistinguíveis. Talvez, como que tentando um caminho do meio, possamos, conforme vêm fazendo alguns, alegar que cara e coroa são duas faces da mesma moeda. Em outras palavras, há os que se contentaram com a seguinte tese: "Estados mentais são estados neurais descritos psicologicamente, e estados neurais são estados mentais descritos neurobiologicamente". Ainda que esse "dualismo de perspectivas" evite as objeções mais triviais – como as que foram levantadas ao longo deste texto –, ele resgata um mistério muito mais antigo: Afinal, se estes estados mentais são a maneira como eu vivencio meus estados neurais, o que realmente está lá fora? E, na medida em que o mundo cognoscível seria arquitetado sob ilusões neurais (cf. Nicolelis, 2011), como eu poderia prover qualquer solidez às minhas teses? Voltaríamos à estaca zero.
No frigir dos ovos, parece não ser muito prudente defender nossas crenças com muita convicção. Pode ser que o problema da consciência seja realmente intratável – ao menos, como sugeri outrora, empiricamente intratável –, bem como que o cérebro seja só uma parte fundamental do que jamais poderemos apreender. Tenho amigos que insistem em dizer que esse papo sobre a consciência é só um pseudoproblema em que inadvertidamente fomos nos meter. Pode ser que eles estejam certos. Mas, por algum estranho motivo, não consigo esperar que cheguem meus sessenta anos para pensar, rever e conversar sobre o caso. E o caso da vez é o de que, conforme as regras da última estação, mente e cérebro continuam não sendo exatamente a mesma coisa.
Referências
- Jackson, F. (1982). Epiphenomenal Qualia. Philosophical Quarterly, 32, pp. 127-36. (Também disponível em [http://instruct.westvalley.edu/lafave/epiphenomenal_qualia.htm].)
- Nagel, T. (1974). What is it like to be a bat? The Philosophical Review, LXXXIII, 4, pp. 435-50. (Versão em português disponível em [http://criticanarede.com/men_morcego.html].)
- Nicolelis, M. (2011). Muito além do nosso eu: A nova neurociência que une cérebro e máquinas – e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras.
- Searle, J. R. (1998). O mistério da consciência e discussões com Daniel C. Dennett e David J. Chalmers. São Paulo: Paz e Terra.
Sou amigo do Thales Viana Coutinho e venho conversando com ele a respeito desta questão. Não sou psicólogo, sou programador, mas a vontade de chegar e criar - ou quem sabe participar da criação de - uma inteligência artificial capaz de realizar cognições, de realmente aprender e evoluir, me fez perceber que para que um programador - ou grupo de programadores - possa fazê-lo, obrigatoriamente, tem que se embrenhar no mundo da mente, de como ela funciona e seus mecanismos. E em programação, é bem definida e conhecida por todos as definições de Hardware e Software. Eu hoje vejo nossa mente da mesma forma que um computador: Nos vejo como um poderoso sistema operacional capaz de atuar em nosso Hardware (corpo) a tal ponto de ativarmos glândulas apenas pela imaginação - uma coisa totalmente virtual. Quer um exemplo? Feche os olhos e fique em um ambiente silencioso. Imagine uma cachoeira, visualize a cena, se imagine mechendo na água, imagine o som da água, visualize as gotas por toda parte. Tente sentir o cheiro da água! Se bobear, dá vontade de urinar, um instinto que temos quando estamos diante de muita água. Então! Isso é só "a ponta" da visão que tenho a respeito. Me encontre: Clebermag.
ResponderExcluirCleber, suas ideias parecem ser inspiradas pela metáfora computacional da mente. Estou certo? Mas, para um computador, o que seria algo como "imaginar"? Ou, ainda, o que nos distingue de um computador? Uma vez que os sistemas computacionais foram criados para reproduzir algumas de nossas funções (como fazer cálculos), eu acho mais interessante que a analogia tome o rumo inverso. Por exemplo, poderíamos ver os computadores como sistemas comportamentais, e poderíamos nos perguntar se em algum momento poderemos criar máquinas que se comportam de modos tão complexos como nós.
ExcluirO que acha?
Olá, Daniel.
ResponderExcluirDescobri o seu blog e achei muito interessante. Minha postagem não é exatamente em relação ao tema do post, mas aí vai:
Tenho me interessado pela corrente behaviorista e também pela cognitivista. Vi que você esteve muito tempo interessado pela segunda, onde só depois troucou-a pelo BR/AC. Teria como me explicar as idéias centrais das duas, de maneira não muito complexa? O que te manteve interessado primeiramente pelo cognitivismo? Por que a troca? O que você viu no behaviorismo que pareceu mais coerente e válido que no cognitivismo? Queria muito conseguir elucidar e ter uma perspectiva mais ampla dessas duas correntes. Conseguir fazer uma melhor distinção das idéias centrais. Se puder me explicar isso e expor as razões pelas quais você mudou de idéia, seria muito bom!
Obrigado!
Olá, Anônimo! Já tentei falar algo a respeito uma vez (http://danielgontijo.blogspot.com.br/2012/04/por-que-deixei-de-ser-cognitivista_22.html), mas talvez valha a pena eu tentar organizar tudo em um novo texto. Outra pessoa procurou-me recentemente com dúvidas semelhantes. Portanto, espero em breve tirar umas horinhas para escrever algo a respeito, ok? Continue acompanhando as postagens.
ExcluirAbraço!
Certo!
ResponderExcluirAguardo ansiosamente pelo seu novo texto.
Abraço!
“Novamente, isso não quer dizer que o sabor e a textura do abacate sejam imateriais, e sim que eles não são idênticos aos eventos neurobiológicos.”
ResponderExcluirEntendo isso da seguinte maneira – Ter conhecimento teórico e linguístico dos eventos neurobiológicos é uma coisa. Ser um determinado evento neurobiológico é outra. Nenhum cientista jamais saberá como é ser eu em um momento “x”. A menos que ele se torne biologicamente idêntico ao meu eu desse momento “x”, o que é impossível.
Abraço,
Mário Kistenmacher Rodrigues
Daniel, pelo amor de deus, escreve o texto! haha
ResponderExcluirAbraço.