quarta-feira, 21 de julho de 2010

Mentes, genes e números: uma reflexão

Durante algum tempo, sobretudo após iniciar minha graduação em Psicologia, venho buscando compreender como funciona o ser humano e o mundo. Encontrei respostas e reescrevi várias questões enquanto estive perto de filósofos como Nietzsche, Descartes e Aristóteles. Cheguei a duvidar da importância de disciplinas como Neuroanatomia e Neurofisiologia para a minha formação, e com Freud comecei a montar as primeiras peças do meu, digo, do quebra-cabeça que é a cognição. Atualmente, cursando Neurociências e estudando um pouco de Psicometria, desconfio que os números e a Biologia vêm, aos poucos, reconstruindo a Psicologia.


Para ser honesto, incomoda-me o fato de muitos psicólogos -- e Psicologias -- negligenciarem a neurociência, as linhas evolucionistas e, em geral, o método científico. Achados recentes sobre sonhos, memória, cognição social, transtornos mentais e personalidade dariam novos contornos a muito do que ainda se ensina na academia. O método científico traz rigor e precisão ao estudo da cognição, e através dele podemos testar hipóteses e detectar e manipular variáveis que, em conjunto, compõem toda a riqueza do comportamento humano. O raciocínio hermenêutico presente na maioria das Psicologias é, apesar de lógico e elegante, carente de evidências. Com efeito, certos postulados e práticas terapêuticas de diversas abordagens tendem a ser imprecisos, dúbios, deficitários. Por outro lado, não há por que deixarmos de lançar mão da velha e boa filosofia, a partir da qual se originam nossos conceitos e são erguidas nossas maiores questões.

Mentes e genes

A resposta para uma dessas questões, "Quem somos?", está presente e é central em qualquer Psicologia. No entanto, quase não se é dito sobre nossas origens ("De onde viemos?"), e em virtude desse desinteresse passamos ao largo de respostas razoáveis sobre a questão anterior. Se não me falha a memória, apenas dois dos meus professores da graduação disseram algo -- embora muito brevemente -- sobre a teoria da evolução das espécies. O fato de que as espécies evoluem em razão da seleção natural elucida grandes enigmas sobre nossa natureza. Por exemplo, nossa história evolutiva explica diversas diferenças cognitivas/comportamentais entre homens e mulheres e, obviamente, entre seres humanos e outros animais. Vivemos em sociedade, nossa comunicação é complexa, calculamos, levantamos prédios, planejamos, amamos e cozinhamos -- e por trás de todas essas façanhas reina a arquitetura de um órgão gradualmente modelado pelas pressões ambientais: o encéfalo.

Enquanto que as mutações genéticas são o primeiro passo para a evolução das espécies, arranjos gênicos atípicos mostram-se grandes responsáveis pelo desenvolvimento de transtornos mentais como a esquizofrenia, o autismo e a bipolaridade. Mais que isso, traços de personalidade e aptidões cognitivas têm sido em parte explicados por diferenças genéticas.

Dar espaço a esse tipo de postulado permite que a Psicologia ganhe novos formatos. Pode ser que não sejamos tão maleáveis e sensíveis às pressões ambientais como supúnhamos -- e essa hipótese desagrada muita gente. Em todo caso, tem soado indubitável a noção de que temos, como os demais animais, uma natureza. Há padrões cognitivos e -- consequentemente -- comportamentais inerentes à nossa espécie. Alguns desses padrões abrangem todos os indivíduos e outros, pelo que parece, variam conforme gênero, idade e, possivelmente, etnia. Dentro de um mesmo grupo, ainda, pessoas têm rendimento variado em tarefas (p. ex., calcular) que exigem o uso de funções cognitivas específicas. Mais que buscar explicações para como nossa cognição se desenvolveu ao longo de milênios, podemos também checar diferenças cognitivas entre indivíduos e grupos.

Mentes e números

Alguns psicólogos (e eu já estive entre eles) parecem crer que a Psicometria se restringe à elaboração de testes que, em último caso, apenas serão importantes para procedimentos técnicos concernentes à área organizacional. Em contrapartida, há teóricos que apregoam que mensurar a cognição talvez seja o modo mais perspicaz de estudá-la. Muito além de distribuir pessoas e grupos em gráficos, dados psicométricos podem, quando sistematicamente analisados, lançar luz sobre a organização, a estrutura da cognição. Por exemplo, o procedimento estatístico denominado análise fatorial revela haver fatores psicológicos básicos, relativamente independentes, que juntos configuram construtos como a inteligência e a personalidade.

Apesar de que pareça haver uma estrutura cognitiva humana universal, o desempenho ou a forma como operam seus componentes varia entre as pessoas. Dito de outra forma, se por um lado a inteligência é ubíqua, por outro lado notamos diferenças em sua manifestação. Características genéticas explicam boa parte dessa variação, e fenômenos sociais como o nível sócio-econômico, o rendimento acadêmico, a saúde e até mesmo a resposta à psicoterapia costumam estar altamente relacionados ao perfil cognitivo das pessoas.

Estudos psicométricos da personalidade permitem o rastreio de dimensões ou fatores psicológicos que descrevem quem -- ou como -- somos. Dados sobre a persistência/flexibilidade desses fatores podem ser levantados a partir de estudos longitudinais. Tendências e preferências ocupacionais e disposições psicológicas podem ser explicadas conforme a configuração dessas dimensões. Apesar de que a personalidade seja um pouco menos determinada geneticamente do que a inteligência (mais ou menos 50 e 78%, respectivamente), no mínimo colocamos em questão a validade de um espesso corpo teórico que há décadas nos trata como organismos totalmente moldáveis às condições ambientais.

Grande parte do que sabemos sobre a estrutura da inteligência e da personalidade advém de estudos em Psicometria. Como estudante de neurociências, não me passa despercebida a questão de como os números obtidos em testes psicométricos refletem aspectos morfológicos, fisiológicos e mesmo bioquímicos do encéfalo. Mensurar nossas aptidões e habilidades cognitivas e, em paralelo, os traços que definem quem somos pode servir como uma avaliação indireta do funcionamento desse órgão. Ainda não sei se esses dados são -- ou como são -- reveladores ou apenas imprecisos, superficiais; mas desconfio, em virtude da evidente relação mente-encéfalo, que de alguma forma o estamos ouvindo -- com pouco ou muito ruído.

Considerações finais

Não sei em que pé terminará esta etapa de minha jornada. Confesso que ainda, e talvez sempre, tenho mais dúvidas do que hipóteses razoáveis sobre o mundo e o ser humano. Sei que ainda é muito cedo para prever o futuro da Psicologia, mas não nego meu otimismo a respeito de sua ascensão em termos de credibilidade e importância sociais. Creio que a metodologia científica nos oferece uma forma de estabelecer diálogos mais satisfatórios com outras ciências e, o que também é muito importante, entre as diversas áreas psicológicas. Não apenas através dos números, vejo na neurociência uma possibilidade de fazer com que o psicológico se torne menos abstrato, intocável, espiritual. Em suma, entender as leis que regem o encéfalo talvez seja o caminho mais proveitoso e seguro para a compreensão da cognição -- mesmo que às vezes o façamos pela direção inversa, isto é, rastreando e avaliando construtos cognitivos.


Sugestões para leitura

  • Pinker, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • Flores-Mendoza, Carmen. Introdução à Psicologia das Diferenças Individuais. Porto Alegre: Artmed, 2006.

5 comentários:

  1. Muito bom o texto!! Ainda estou na graduação e me identifiquei muito com o que você relatou.
    Ainda no segundo semestre, quando toda a psicanálise tava apenas começando a fazer algum sentido, me deparei com uma série de questões. Talvez a que mais "explodiu" minha visão de mundo foi a questão da existência ou não do livre-arbítrio. Depois disso veio a questão do que é consciência, da existência ou não e da natureza dos qualia, um questionamento sério sobre o que é inteligência, etc... E de tudo isso veio também a noção da importância do estudo da neuroanatomia, neurofisiologia e genética.
    Essa busca, academicamente falando, é extremamente solitária... Mesmo tendo tentado compartilhar as coisas que encontrava, discutindo em aula, me utilizando disso em trabalhos acadêmicos, enviando textos traduzidos para o e-mail da turma, não consegui muitos companheiros.
    Mas tudo bem, na Psicologia, este parece ser "o caminho menos percorrido".
    O que mais me encanta neste caminho é que, depois de 3 anos estudando, lendo, relendo, estou constantemente reformulando minhas respostas, é sentir como se ainda soubesse muito pouco. Acredito que este é o caminho que vai me surpreender pelo resto da minha vida.

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  2. Não sabe o quanto fico contente ao encontrar pessoas que pensam ao menos um pouco parecido comigo, Cláudio. Como você comentou, às vezes fazemos uma busca meio solitária.

    Também já despendi tempo em grandes questões como as sobre consciência e livre-arbítrio, para as quais as poucas respostas que encontrei são ainda insatisfatórias.

    Mas talvez seja esta a graça de nossas jornadas: estar sempre à procura de alguma coisa. Se não houvesse dúvida, não haveria caminhada.

    Um abraço!

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  3. Muito legal teu texto Daniel! A falha em utilizar a teoria da evolução, a neurociência e a genética para compreensão da natureza humana na psicologia brasileira só nos atrasa e prende no tempo, enquanto o resto do mundo já percebeu a importância e está produzindo artigos e livros a todo vapor.

    Se Darwin propôs uma teoria, extremamente corroborada hoje, que consegue explicar uma série de aspectos do funcionamento e diversidade dos animais, como ousamos ignorá-la para entender melhor a nossa espécie? É uma impostura intelectual da parte de nossas universidades que me chateia, chega a ser burrice. Quanto à neurociência, prefiro nem começar a falar...hahahaha
    Qualquer pessoa que ler algum handbook of social neuroscience ou cognitive neuroscience vai poder entender a importância gigantesca de se estudar o cérebro humano, não tem para onde ir, nem adianta continuarmos tentando nos esconder atrás dos livros de Freud. As evidências que estão sendo obtidas são de maravilhar qualquer um, se Freud ainda vivesse ia sair correndo pra uma biblioteca estudar neurociências, hehehe

    Estudo psicologia na Universidade de Brasília, e por aqui as coisas não são muito diferentes do que vc descreveu, muitos professores ainda correm de medo do o método científico, e Freud ainda é ensinado em algumas disciplinas como verdade absoluta.

    A caminhada pode ser solitária, mas tenho certeza que será recompensadora para quem tem sede de compreensão e força de vontade. Não podemos ceder à ignorância só porque estamos rodeados por ela.
    um abraço,
    André

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  4. Obrigado pelas lúcidas palavras, André. Acredito que a resistência - ou a ignorância - de alguns professores no sentido de entrar em contato com postulados evolucionistas e neurocientíficos vai sendo atenuada gradativamente. No entanto, parece provável que mudanças efetivas nos currículos (grades) e na "postura ideológica" do corpo docente só aconteça com a entrada de novas cabeças (nova geração de professores) nas universidades.

    Façamos nossa parte.

    Um abraço!

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  5. Seriam esses padrões cognitivos compartilhados por serem do individuo, ou seriam compartilhados por estes individuo pertencerem a ambientes parecidos?

    Contingências compartilhadas em determinadas sociedades criam falsos padrões estatísticos que podem corroborar uma visão de causas internas...

    Mas isso só a pesquisa científica pode nos mostrar...

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