segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Em busca da inteligência

Imagine Cristóvão Colombo em uma ilha, sozinho, lutando para sobreviver. Colombo esqueceria coisas e, assim, teria o conceito de memória. Ele aprenderia novas habilidades e, desse modo, teria o conceito de aprendizagem. Porém, ele somente desenvolveria o conceito de inteligência quando Pedro Álvares Cabral chegasse e aprendesse essas habilidades mais rapidamente e melhor do que ele havia aprendido (adaptado de Jensen, 1979, citado em Flynn, 2009).

Como ilustrado acima, o termo inteligência é comumente empregado para explicar diferenças de rendimento cognitivo entre pessoas. Se Cabral aprende mais rapidamente e melhor do que Colombo, provavelmente também o supera na resolução de uma diversidade de problemas. Ficamos, com efeito, instados a considerá-lo mais inteligente do que o segundo.

Colom (2006), a respeito de um estudo de Sternberg (1981), assevera que as pessoas em geral possuem uma ideia definida sobre o que é inteligência, e que essa ideia coincide muito com a visão de um cientista. Conforme definiram os entrevistados, uma pessoa inteligente "fala com clareza e fluidez", "raciocina com lógica", " identifica relações entre ideias", "vê todas as variantes de um problema", "é um bom conversador", "domina uma determinada área do conhecimento", "mantem sua mente aberta" e "interessa-se pelas coisas do mundo em geral". Como vemos, esses atributos referem-se à manifestação do que chamamos inteligência. Por exemplo, só uma pessoa suficientemente inteligente consegue dominar um assunto complexo e, ainda, explicá-lo de maneira clara e eficiente. Para usar um ditado: "Falar difícil é fácil; difícil é falar fácil".

Por outro lado, todos conhecemos indivíduos que raciocinam com lógica e dominam temas complexos (p. ex., álgebra e genética) mas que não são bons conversadores. Apesar disso, "falar com clareza e fluidez" costuma ser um atributo menos notável e socialmente valorizado do que "raciocinar com lógica" e "dominar determinada área do conhecimento". Em ilhas desertas, vilarejos ou em grandes cidades, as duas últimas habilidades tendem a gerar mais vantagens do que a primeira. Disso decorre que certas habilidades caracterizam melhor a inteligência do que outras. Além do mais, é mais provável que pessoas que raciocinam com lógica também falem com clareza e fluidez do que o contrário. Se submetidos a baterias de testes de inteligência, geneticistas e físicos decerto superariam, em média, radialistas e pastores (que são, em geral, exímios conversadores).

Na verdade, nosso rendimento em diferentes habilidades cognitivas costuma ser razoavelmente homogêneo. Se Cabral consegue planejar e armar armadilhas para capturar animais, provavelmente também é capaz de arquitetar uma balsa e se orientar pelas estrelas. Com efeito, a alta correlação no desempenho das pessoas em diversas provas cognitivas vem levando (desde a primeira metade do século passado) os psicometristas a postular a existência de uma inteligência geral. Seria algo como termos uma central cognitiva controlando nossas habilidades específicas, mais ou menos como no esquema abaixo:


Modelos hierárquicos como esse são desenhados de acordo com análises estatísticas aplicadas ao resultado de um conjunto amplo de testes cognitivos. Boa parte desses modelos é composta por um fator geral, o fator g. Em razão de seu alto poder explicativo e preditivo sobre aptidões amplas (p. ex., inteligência verbal) e habilidades específicas (p. ex., fluência verbal), o fator g é comumente tratado como o representante da inteligência geral.

Status quo e perspectivas

A inteligência pode ser considerada como o construto mais bem estudado pela Psicologia (Flores-Mendoza, 2010). Apesar disso, ainda há quem o trate com desconfiança, descaso e, como às vezes percebo, preocupação. No entanto, e como asseverou Colom (2006), há um consenso geral na comunidade científica a respeito dos seguintes pontos:

  • As pessoas [diferem] em sua capacidade geral para raciocinar, resolver problemas e aprender;
  • Essa capacidade pode ser medida imparcialmente por meio de testes padronizados;
  • As diferenças de capacidade devem-se à influência conjunta de diferenças genéticas e ambientais;
  • As diferenças de capacidade predizem mais de 60 importantes fenômenos sociais.

Cabe esclarecer que a inteligência é ubíqua, isto é, que todas as pessoas são inteligentes. Podemos, com treino, aprimorar nossos potenciais cognitivos -- que são tão plásticos quanto nossos circuitos neurais. Encontrar um núcleo encefálico para a inteligência parece, contudo, distante da expectativa mesmo do cientista mais otimista. Pelo contrário, e como no caso da consciência, pode ser que diversos mecanismos estejam trabalhando em equipe, de forma sincrônica, seguindo regras intrínsecas e atuando conforme as demandas ambientais. Seja como for, tem sido excitante a empreitada de tentar desvendar os segredos daquilo que me permite desvendar segredos.



Referências

  • Flores-Mendoza, C. (2010). Inteligência Geral. In Malloy-Diniz, L. F., Fuentes, D. Mattos, Abreu, N. Avaliação Neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed, Cap. 5, p. 58-66.
  • Flores-Mendoza, C., Colom, R. (2006). Introdução à Psicologia das Diferenças Individuais. Porto Alegre: Artmed.
  • Jensen, A. R. (1979). The nature of intelligence and its relation to learning. Journal of Research and Development in Education, 12: 79-85. In Flynn, J. R. (2009). O que é inteligência? Porto Alegre: Artmed.

2 comentários:

  1. Oi Daniel, gostei de ler teu texto. Tenho trabalhado nessa linha com meus alunos quando estudamos sobre o tema inteligência na disciplina de Processos Psicológicos Básicos. E acredito que realmente temos aptidões e habilidades que podem ser aperfeiçoadas, se estimularmos nossa "central cognitiva". E nesse sentido, muito se fala na teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner, sobre as áreas/habilidades específicas que cada indivíduo apresenta mais desenvolvida.

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  2. Olá, Marcia. Obrigado pela visita.

    Sobre a teoria das inteligências múltiplas, já tive um contato breve com o livro "Estruturas da Mente" (1994), de Gardner, onde ele as propõe e debate. Acho interessante e coerente a ideia de que temos habilidades ou inteligências específicas. Por outro lado, acho arriscada a proposta de que elas sejam independentes. Para além de se combinarem numa diversidade de maneiras (como diria Gardner), parece haver pontos de intersecção em seus respectivos processamentos. Psicometricamente falando, a esses pontos chamamos "fatores", e o fator g entraria como o representante da inteligência geral. Em termos neuropsicológicos, parece que algumas das nossas funções executivas (como a memória operacional) atuam, juntas, de forma a amarrar e a controlar boa parte do nosso desempenho nessas habilidades. Além do mais, mesmo algumas de nossas habilidades específicas (como efetuar cálculos matemáticos) poderiam recrutar, além dos circuitos pré-frontais (funções executivas), vias de processamento verbal e viso-espacial. Com efeito, esse processamento polimodal comprometeria a ideia de independência ou restrição anatômica dessas habilidades ou inteligências específicas.

    Um abraço.

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