A história de diferentes povos seguiu diferentes rumos não por causa de diferenças biológicas entre esses povos, mas por causa de diferenças ambientais (Diamond, 1997). No âmbito do que venho estudando, os povos europeus são mais ricos e menos religiosos não em razão de sua maior inteligência, mas em razão de circunstâncias ambientais diferenciadas que caracterizaram seu percurso histórico.
Esse comentário, que postei antes de ontem (30/07) no meu mural do Facebook, rendeu uma discussão assaz interessante e apimentada. Um grande e velho amigo que tenho tomou-o como alvo de críticas contundentes, colou-o e ridicularizou-o em seu próprio mural e reservou-me conselhos e adjetivos depreciativos. Em vista disso, decidi tecer uma breve explicação do que quis dizer com aquelas palavras, bem como tentar resolver alguns mal-entendidos sobre ambiente(s), história(s) e determinismo(s).
Armas, germes e aço
Naquele dia, preparando um material para um trabalho que estou desenvolvendo com alguns amigos, trombei com uma resenha do livro Guns, genns, and steel: The fates of human societies (1977) do biólogo e geógrafo norte-americano Jared Diamond. Cito algumas asserções de Diamond que chamaram minha atenção: "Diferenças entre pessoas de diferentes continentes têm decorrido de diferenças ambientais, não por diferenças inatas" e "Testes de habilidades cognitivas (p. ex., testes de QI) tendem a medir aprendizagem, não uma inteligência puramente inata, seja lá o que isso for". O trecho que colei no meu mural do Facebook capta a ideia básica dessas afirmações.
Diamond, cujo livro foi resenhado por P. A. Lamal (1999), atribui a certas características ambientais o motivo hipotético pelo qual diferentes populações, num passado remoto, mudaram da caça e da coleta para a produção organizada de alimentos em diferentes tempos. Eis algumas dessas características diferenciais:
- Presença de animais domesticáveis e plantas;
- clima e fertilidade;
- barreiras continentais (possibilidades de migração e difusão de práticas culturais) e;
- tamanhos de área geográfica e de população.
Em suma, variações ambientais teriam determinado quando pessoas de diferentes continentes se tornaram pastores e agricultores, sendo isso um dos prerrequesitos para o desenvolvimento de organizações políticas complexas e tecnologias como a escrita e "armas, germes e aço". Nesse sentido, a vantagem e a prevalência de umas sociedades sobre outras seriam primordialmente configuradas conforme suas possibilidades de interação com o ambiente circundante. Essas diferenças continentais seriam mais favoráveis às sociedades da eurásia do que às sociedades americanas e africanas. "Jared Diamond", conclui Lamal, "apresenta-nos argumentos persuasivos para o papel causal do macroambiente nos destinos das sociedades humanas".
Ambiente(s)
Embora eu ainda não tenha lido o referido livro do Diamond, tomei suas hipóteses como atraentes e coerentes. Coerentes porque não podemos falar da evolução de espécies, de comportamentos e de sociedades/práticas culturais sem contextualizá-los, isto é, sem analisá-los enquanto objetos inseridos em ambientes com os quais interagem. E atraentes porque são totalmente passíveis de ser estudados conforme os princípios do selecionismo: modelo causal que adotamos enquanto behavioristas radicais, que é adotado pela Biologia Evolucionista e que pode ser adotado pelo nível de análise social (seleção e difusão de práticas culturais conforme suas consequências). (Esclarecer a proposta selecionista pode ser importante para evitar novos mal-entendidos, mas preferirei dar passos adiante para que minha exposição não se torne exaustiva e dispersa.)
Acontece, contudo, que "o que Diamond chama por ambiente é geografia. A concepção behaviorista de ambiente", ressalta Lamal, "inclui mais que geografia". No nível individual, o termo ambiente se aplica à situação ou contexto no qual o responder (digamos, criticar um comentário) acontece e à situação que passa a existir após o responder (digamos, mudar o comportamento de um amigo). No nível social, poderíamos pensar, por exemplo, no contexto político-econômico no qual revoltas, passeatas, atentados, invasões, golpes, guerras e conquistas acontecem, bem como nas consequências desses eventos. Daí que a riqueza, o nível de religiosidade e até mesmo a inteligência média de uma nação poderiam ser explicados por "circunstâncias ambientais diferenciadas que caracterizaram seu" desenvolvimento.
O atentado ao World Trade Center, em 2001, foi contexto para a publicação de uma torrente de livros que apresentam críticas veementes ao comportamento religioso ortodoxo. |
Desconfio que, ao entendermos a acepção de ambiente tal como proposta pelo behaviorismo radical, boa parte dos mal-entendidos é elucidada. Meu amigo, ao que parece, vinha interpretando que todo o perfil contemporâneo do povo europeu seria explicado por condições ambientais remotas e restritas a características geográficas e de fauna e flora. Embora essas condições possam ter sido primordialmente relevantes, condições e eventos subsequentes não devem ser desconsiderados. Fazê-lo, com efeito, é o mesmo que afirmar -- equivocadamente -- que certos comportamentos que exibimos atualmente são unicamente determinados pelos tipos de relação que estabelecemos com nossos pais e irmãos durante a infância. É verdade, como no caso das sociedades, que essas primeiras relações têm seu poder causal; contudo, é imprescindível levar em conta toda a cadeia de eventos que configurou -- e as condições que mantém -- os padrões comportamentais atuais de uma pessoa. É por isso que precisamos, para compreender um fenômeno social contemporâneo, considerar eventos como migrações, explorações, conflitos, trocas mercantis e popularização da Internet.
Inteligência e religiosidade
Inteligência é um construto polêmico. O consenso da comunidade científica é o de que inteligência é a capacidade de aprendizagem, de raciocínio e de resolução de problemas (Colom, 2006). Podemos medi-la através de testes cognitivos validados e padronizados; suas medidas estão relacionadas a uma variedade de fenômenos (p. ex., cargo laboral ocupado, renda, saúde e resposta à psicoterapia) e as pessoas variam em termos dessas medições.
A inteligência média de uma população pode ser estimada, e as sociedades européias geralmente apresentam os maiores escores. Essas sociedades são mais ricas e menos religiosas do que, p. ex., as sociedades africanas e sul-americanas, mas isso não significa que a inteligência seja o fator causal dessas diferenças. Isso deve ter ficado claro no meu comentário: "os povos europeus são mais ricos e menos religiosos não em razão de sua maior inteligência, mas em razão de circunstâncias ambientais diferenciadas que caracterizaram seu percurso histórico". A inteligência, tal como a personalidade e a religiosidade, é um produto -- embora produtos retroajam causalmente sobre eventos subsequentes. Prefiro, portanto, e tal como o faz Diamond, tomá-la como uma medida de aprendizagem. Meu amigo asseverou apropriadamente, mas não com as seguintes palavras, que melhores sistemas de ensino produzem ou modelam certos comportamentos que, em testes de inteligência, tendem a ser classificados como corretos. As nações européias não são geneticamente superiores; seus sistemas educacionais, sim.
Acerca da relação inteligência-religiosidade, prefiro abordá-la em pormenores numa outra oportunidade.
Às críticas
Acredito que, diante de todo o exposto, devo dispensar explicações sobre por que não há racismo, etnocentrismo e biologicismo expressos, explícita ou implicitamente, naquele comentário -- exemplos de rótulos com que fomos (meu comentário, Diamond e eu) carimbados. Como parece ter acontecido com o termo ambiente, deve ter havido, sobretudo por parte dos colegas do meu amigo, interpretações equivocadas e levianas das minhas palavras -- e das do Diamond.
Considerações finais
Constatar diferenças individuais e de nações comumente faz irromper uma miscelânea de sentimentos nas pessoas -- dos melhores e dos piores. Contudo, investigar os fatores que promoveram e mantém essas diferenças pode fazer atenuar esses humores. Na verdade, fazê-lo é um primeiro passo para a possibilidade de planejarmos intervenções capazes de diminuir certas diferenças. Essa tarefa vem sendo em parte tomada pelos pesquisadores da Psicologia Diferencial (que estudam sobretudo o desenvolvimento da inteligência e da personalidade), e empreendimentos do tipo podem ser adotados por aqueles que estão envolvidos com as macro e metacontingências -- as relações políticas e econômicas entre populações e sociedades.
Às vezes, notamos que hipóteses de alguns pesquisadores de um determinado nível de análise, como o cultural ou o filogenético, são erroneamente lidas por pesquisadores de níveis adjacentes. Dicotomias como inato-aprendido e social-individual tendem a ser entendidas para além do seu sentido didático, gerando condições para que brigas infrutíferas e ingênuas comecem a ser tristemente travadas. O ser humano é um animal biopsicossocial, mas apenas no sentido de que podemos analisá-lo nesses distintos mas complementares níveis de análise, a saber, o biológico, o psicológico e o social. A herdabilidade de traços não implica que o ambiente não determine o desenvolvimento desses traços. O joão-de-barro não engendra seu ninho na ausência de barro, esterco e palha, e uma criança só aprende a falar caso seja exposta a um ambiente verbal -- pessoas que conversam umas com as outras e que ensinam seus filhos a fazer o mesmo. A linguagem, a inteligência, a personalidade e, como alguns querem, a religiosidade são herdáveis tão-somente no sentido de que temos, enquanto espécie, os genes que, graças a certas condições nutricionais, codificam mecanismos elementares que, estimulados pelo ambiente social, funcionam de forma que aqueles traços se desenvolvam e sejam detectados por nossos instrumentos (sensoriais e tecnológicos).
Referências
- Colom, R. (2006). O que é inteligência? Em Flores-Mendoza, C., & Colom, R. Introdução à Psicologia das Diferenças Individuais. Porto Alegre: Artmed.
- Diamond, J. (1997). Guns, genns, and steel: The fates ofhuman societies. New York: Norton.
- Lamal, P. A. (1999). The Really Big Picture: A Review of Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies by Jared Diamond. The Behavior Analyst, 22, 73-76 No. 1 (Spring)
Poxa Daniel, triste mesmo é constatar que tivesses de usar umas mil e quinhentas palavras para explicar um comentário que dispensava explicação. Isso por causa da intolerância de um rapaz que, ao que me parece, sofre de um "germe" implantado em sua mente por um sistema educacional excessivamente influenciado pela "filosofia continental".
ResponderExcluirAinda espero por uma resposta dele, Cláudio. Não tenho certeza se o caso foi simplesmente um mal-entendido sobre o significado de termos como "ambiente"... ou mesmo sobre dar crédito exclusivo e excessivo a eventos primordiais para explicar o perfil das sociedades contemporâneas. Vamos aguardar.
ResponderExcluirUm abraço.
Já estava prestes a perguntar sobre a relação entre um menor nível de religiosidade e um maior quociente médio de inteligência entre um povo. Mas o texto logo o explicou bem. Aliás, esse tema do desenvolvimento das civilizações sempre despertou minha curiosidade.
ResponderExcluirArnaldo,
ResponderExcluirSobre a relação inteligência-religiosidade, meus colegas e eu temos trabalhado com a chamada hipótese da incompatibilidade: certas descrições teológicas sobre o mundo/ser humano são incompatíveis -- por serem funcionalmente equivalentes -- com descrições do tipo naturalista. Por exemplo, crer que Deus criou os seres humanos compete com a explicação selecionista da origem das espécies. Anos adicionais de educação, relacionados às demandas de mercado, vêm fazendo com que as pessoas reinterpretem ou, em certos casos, abram mão das crenças teológicas que são tradicionalmente difundidas. Isso não é o suficiente para explicar a "onda ateísta", mas parece explicar parte da queda do nível de religiosidade das pessoas de inúmeras sociedades atuais.
Um abraço.