Eles são cientistas. E eles acreditam em espíritos e reencarnação. Agora, estão usando o laboratório para provar que tudo isso não é apenas questão de fé. E dizem que estão conseguindo.
O excerto supracitado é a manchete da Super Interessante deste mês (outubro de 2011). Embora convidativa e exagerada, como costuma ser quase toda capa de revista, a matéria não se limita a relatar anedotas que dão um frio na barriga. Em contraste, os autores (Nogueira e Castro) tiveram o escrúpulo de contar o outro lado da história: o fato de que pesquisas sérias acerca do tema estão apenas começando, bem como, e principalmente, que não há dados empíricos que corroborem a tese de que corpo e mente (ou alma) são entidades de natureza ou substância distinta. Contudo, e se isso for verdade, o que dizer das experiências extracorpóreas que praticantes de meditação, pacientes de enfarte e sobreviventes de acidentes relatam?
Quase lá: uma visão do além
No
final do século passado, van Lommel e seus colegas queriam saber se um
punhado de pacientes acometidos por parada cardíaca tiveram o que tem
sido chamado experiência de quase-morte (EQM). Em situações cujo
risco de morrer é alto, como ao cair de precipícios, sofrer acidentes de
trânsito ou passar por afogamentos, alguns sobreviventes relatam
experiências atípicas, às vezes extasiantes, que sugerem a existência do
além. Algumas dessas vivências são "se ver fora do corpo", "encontrar
com entes falecidos", "ser tomado por sensações agradáveis" e
"visualizar luzes ou túneis". No estudo que publicaram na revista The Lancet
em 2001, Lommel e cols. relataram que 62 dos 344 pacientes (18%)
entrevistados tiveram (ou recordaram de) uma EQM. Antes de serem trazidos de volta à consciência pela equipe médica, constatou-se que
o registro miográfico desses pacientes estava plano, zerado, o que os caracterizava como clinicamente mortos. Com efeito, esses pesquisadores tomaram seus relatos como um indício de que a consciência, ou a alma, é uma instância que independe do corpo material, tese comumente denominada dualismo de substância.
Os entusiastas do dualismo costumam se armar com anedotas no mínimo arrepiantes. Para tomar um exemplo da Super,
um major aposentado viu-se, do teto, deitado na maca à medida que
recebia, para ser ressuscitado, descargas elétricas no peito. E viu
também a esposa, então de vermelho, que o aguardava apreensiva no cômodo
ao lado. Após ser tragado de volta para o corpo, o militar espantou-se
ao notar que sua amada estava de fato com a vestimenta vermelha que
avistara! Em um caso descrito no artigo de Lommel, um homem em coma
teria notado, de fora do corpo, uma enfermeira levar sua dentadura em um
carrinho de tralhas. Quando desperto, dias depois, trombou com a
enfermeira e lhe pediu seus dentes postiços. O paciente, tendo acertado
na mosca (ou na enfermeira), teve de volta seu sorriso e ganhou atenção
diferenciada da mídia e da equipe médica.
Lommel e cols., na discussão de seu estudo, deixaram uma mensagem provocadora:
Na falta de evidência para qualquer teoria da EQM [...] o conceito de que a consciência e a memória estão localizados no cérebro deve ser discutido. Como pode uma clara consciência fora de seu corpo ser experienciada à medida que o cérebro não funciona no período de morte clínica [...]?
Meditação: uma espiadinha no lado de lá?
Há
cerca de seis ou sete anos atrás, eu vinha praticando meditação
regularmente. Tive experiências estranhas com essa técnica, como quando senti-me flutuando, esticando ou encolhendo, reduzido a duas
dimensões e possuído por repentinas sensações orgásticas. Mas
minha primeira experiência profunda foi, ao menos inicialmente,
estarrecedora: senti-me paralisado, fora do corpo e, à medida que era
puxado, com a inequívoca impressão de que estava à beira da morte! O que
motivou minhas aventuras meditativas posteriores foi minha extrema
curiosidade e o desfecho deleitoso daquela experiência: fã declarado do
anime Dragon Ball, fui não por acaso contemplado com o poder de
voar e de descarregar torrentes luminosas de energia em um misterioso local vazio
(algo como tiros consecutivos de kamehamehas)!
É provável que eu nunca tenha acordado tão descansado e maravilhado
como na manhã do dia seguinte. Enquanto estive por lá, lembro de pensar
ininterruptamente: "Não quero jamais sair daqui... jamais!".
Goku lançando um poderoso kamehameha. |
Cerca de um ano após essa primeira
experiência, algo curioso aconteceu. No meu quarto, então dividido com
um dos meus irmãos, deitei e comecei a meditar. Em meio ao chiado
estranho que costumava preencher meus ouvidos nessas ocasiões, meu corpo
adormecia lentamente... e minha consciência se segurava por apenas um
fio, em seu limiar mínimo, como que lutando contra a investida do sono.
Passado algum tempo, eis que me deparo com uma cena inusitada: meu corpo
na cama, estendido, e eu do lado de fora! Assustado, olho para os lados
e começo a caminhar, casa adentro, indagando se tudo aquilo era mesmo
real. Sem resistir por mais que alguns passos pelo corredor, senti-me
sugado de volta -- era tempo de despertar. Numa espécie de errado que
deu certo, defrontei-me com uma incoerência que fez calar meu desejo de acreditar nas implicações sobrenaturais daquelas experiências: desperto, notei que eu não estava na cama da esquerda, tal como percebera durante a
meditação, mas na da direita! Aquela vivência espetacular, em vez de se referir a uma pista
de que corpo e alma são coisas dessemelhantes, pareceu-me dizer
de uma construção que meu cérebro fez com base em memórias remotas e em eventos que imediatamente a antecederam.
Em memórias remotas porque, devo esclarecer, eu sempre dormi na cama da
esquerda, e não na da direita. Então, e à medida que foi sendo criado
aquele sonho induzido (chamado pelos místicos de viagem astral ou projeção),
foram sendo misturados elementos recentes (estar deitado em meu quarto e
a meditar) com elementos remotos (estar deitado na cama onde costumava,
por anos, dormir). Bingo: a incoerência dos cenários fez crescer com
vigor a tese monista! Foi a segunda vez que vi brotar em mim um senso cético tão forte e animador.(1)
O lado cético da história
Como aludi inicialmente, os autores da matéria da Super
são inteligentes. Em razão de carimbarem na chamada da matéria a
insinuação de que o dualismo vem sendo empiricamente ratificado, tanto o crente como
o cético ficam instados a comprar a revista. Contudo, e a fim de se
resguardar da crítica intelectual, trazem embutidos avisos que
contrariam sua jogada propagandística. Esses avisos são "o lado cético
da história", que deve ser salientado mas que é comumente negligenciado
por certos, para não dizer inúmeros, leitores (sobretudo os que crêem em
eventos e entidades sobrenaturais). Passo a ilustrar, com um trecho,
esse lado da matéria:
A maior parte dos pesquisadores entende que [as EQMs] não passam de uma confusão cerebral. No momento de uma parada cardíaca [por exemplo], a perda de oxigênio faz com que a massa cinzenta deixe de distinguir realidade e fantasia. Balançada pela desordem, recorre à memória de curto prazo para compreender a situação. Então se depara com cenas que acabou de registrar, como a própria sala de cirurgia [...] e nos prega uma peça. Todas as nossas lembranças registram uma visão panorâmica, como uma imagem de um filme, em terceira pessoa, criando a sensação de estarmos fora do próprio corpo. [...] O cérebro é um diretor de cinema. E o seu corpo, o protagonista (pp. 61-62).
Um
parente meu, ao ser submetido a uma neurocirurgia, visualizou ele
próprio sendo carregado por um falecido padre mineiro de quem é devoto e
que é, por muitos, considerado como santo. Por vários dias, e
provavelmente momentos antes do procedimento operatório, ele direcionou
preces fervorosas àquela aclamada santidade. Não só com elementos
próximos ou remotos, como a movimentação de uma sala de cirurgia ou uma
boa-cama-para-se-meditar, o cérebro parece configurar um cenário
onírico com base em crenças, desejos e expectativas daqueles que vivem
uma EQM (ou algo similar a uma). O momento aprazível e confortável
sentido pelo meu parente parece ter sido associado, em seu histórico de
experiências, à figura zelosa de padre Libério,
o milagroso que o protegeria. No meu caso, o prazer, a soltura do corpo e a sensação de
poder estiveram associados às aventuras que, na pele de Goku, acompanhei
empática e energicamente na adolescência.
Nem todas as pessoas vêem túneis e entes falecidos, e o que vêem é provavelmente fundado em
experiências prévias que, por algum motivo, foram associadas àquele
perfil de funcionamento neurobiológico. O estudo de Lommel e cols., por
exemplo, constatou que apenas 15 dos 62 pacientes (24%) relataram ter
tido uma experiência extracorporal, enquanto 32% disseram ter encontrado
com parentes falecidos. Em um artigo que acaba de sair do forno,(2)
Mobbs e Watt (2011) comentam que o conteúdo das EQMs covaria com a
liberação anormal, modulada por drogas (como as administradas em
intervenções médicas) ou situações adversas, de neurotransmissores como a
dopamina, a noradrenalina e os opióides. Os autores ressaltam que
experiências extracorpóreas podem resultar não só de EQMs, mas de condições como a paralisia do sono
e a estimulação de sítios neurais como a junção temporoparietal.
Na verdade, pouco mais da metade (51%) dos fenômenos rotulados como EQMs não envolve risco de morte real. E alguns de seus conteúdos, como alucinações com fantasmas, entes falecidos ou monstros, são ocasionalmente descritos por pacientes com Alzheimer ou Parkinson, cujos perfis neuroquímicos
encontram-se assaz alterados. Ao final, os autores concluem
que "a evidência científica sugere que todos os aspectos da experiência
de quase-morte tem uma base fisiológica ou neuropsicológica".
Contra toda a rede de explicações psicológicas e
neurobiológicas, alguns defensores do dualismo lembram que, como no
estudo de Lommel, os pacientes que passaram por uma EQM tiveram cessadas
suas atividades cardiocirculatórias ou, como em outros estudos,
cerebrais. Contudo, e como levantado na matéria da Super, o eletroencefalograma registra essencialmente a atividade do córtex cerebral,
a camada superficial do cérebro. Regiões subcorticais (que são mais profundas) podem, portanto,
continuar em atividade sem que os aparelhos as detectem. Mas uma
hipótese alternativa, ou mesmo complementar, é a seguinte: fenômenos como as EQMs acontecem antes da constatação da morte clínica ou da perda de consciência, e não enquanto.
Pouco antes de se desligar, a ideia de estar sofrendo um
enfarte ou um afogamento poderia, em instantes, gerar um rico cenário
onírico, então permeado por elementos que circundam a vítima (como a
equipe médica) e por crenças e expectativas preconcebidas (como
reencontrar entes falecidos ou ser acalentado por um santo). O tom dessa espécie de sonho, ademais, seria regulado pelo balanço químico produzido pela
experiência em questão (enfarte, submissão a drogas ou meditação). Vejo
essa hipótese, mais razoável do que a alternativa, como uma síntese do que foi trazido pela Super e pelo artigo de Mobbs e Watt (2011).
Considerações finais
O debate acerca da dualidade
corpo-mente (ou espírito) deve perdurar por mais algumas gerações. À
medida que a ciência avança, contudo, explicações mágicas e
sobrenaturais vão perdendo seu espaço. Imagino que o problema
mente-cérebro seja uma das últimas e mais profundas trincheiras nas
quais crenças religiosas mantém-se protegidas contra as investidas
céticas. Se podemos provar que a Terra é redonda, que não é o centro do
Universo e que não tem seis ou oito mil anos, e se temos evidência de
que a origem das espécies não decorre do dedo de um projetista poderoso,
resta-nos mostrar consistentemente por que a tese de uma vida eterna e
espiritual é incoerente. Como fazer isso? Ao lado das evidências
indiretas da neurociência, é possível que as EQMs possam nos ajudar.
O estudo do cardiologista Sam Parnia e do neurologista Peter Fenwick ilustra o que pode ser feito. Como descrito na Super,
esses pesquisadores instalaram "150 placas pelo hospital, com sinais,
textos e desenhos virados para cima, posicionados de tal maneira que
apenas alguém localizado no teto poderia ler. [Se] um paciente contasse o
que havia na placa, a experiência fora do corpo estaria comprovada" (p.
60). Mas nenhum dos 63 pacientes ressuscitados alegou ter feito uma
viagem espiritual, e a experiência mostrou-se um fracasso. Não sei se
outros trabalhos dessa natureza foram realizados desde então; sei que os
vejo como uma forma de sairmos das anedotas, que às vezes são
fomentadas pelo desejo de visibilidade ou por vieses de pesquisa, e
encararmos o problema de forma séria.
Alguns,
como eu, são contemplados com a chance de ver com os próprios olhos a
incoerência do dualismo (e, é claro, com as condições sociais adequadas
para que o ceticismo e o conhecimento científico floresçam). Outros, que compõem a
maioria, são enganados pela forma como parte de si mesmo funciona --
isto é, pelas peças casualmente pregadas pelo cérebro. Como cético e um
pouquinho entendido de neurociência, devolvo a provocação a Lommel:
Diante do pesado conjunto de evidências que sustenta a tese de que a mente é um produto da atividade do encéfalo (ou que é essa atividade), o conceito popular de que memória e consciência são coisas imateriais deve ser discutido.
Notas
(1) A primeira vez foi quando, no sítio de meus pais, descobri que os supostos alienígenas que estavam no telhado tentando me abduzir eram, como fui conferir na alvorada, galinhas d'angola.
(2) Devo agradecer ao meu colega André Rabelo pelo encaminhamento do artigo.
Referências
- Mobbs, D., & Watt, C. (2011). There is nothing paranormal about near-death experiences: how neuroscience can explain seeing bright lights, meeting the dead, or being convinced your are one of them. Trends in Cognitive Sciences, 15(10), 447-449. Elsevier Ltd.
- Nogueira, P, & Castro, C. (2011). Ciência Espírita. Super Interessante, ed. 296. São Paulo: Editora Abril.
- Owens, J.E. et al. (1990) Features of near-death experiences in relation to whether or not the patient were near death. Lancet 336, 1175-1177.
- van Lommel, P., van Wees, R., Meyers, V., & Elfferich, I. (2001). Near-death experience in survivors of cardiac arrest: a prospective study in the Netherlands The Lancet, 358 (9298), 2039-2045 DOI: 10.1016/S0140-6736(01)07100-8
Muito bom, Daniel!
ResponderExcluirParabéns pelo texto. Já estou recomendando ele a várias pessoas.
Abraços
Obrigado, Pedro! Embora eu não tenha tido todo o cuidado ao escrevê-lo, espero que ele esteja acessível ao público em geral...
ResponderExcluirAbraço!
Poxa, Daniel, tinha escrito um comentário gigante aqui e deu erro na hora de enviar... argh...
ResponderExcluirHehe, enfim, confesso que ri DEMAIS com suas experiências místicas. Eu, quando tentava meditar, no máximo me concentrava no meu joelho coçando ou no barulho em volta. Você tem uma tendência maravilhosa a ter essas sensações malucas, pelo jeito. Fiquei pensando em quantos meninos místicos o Dragon Ball Z criou na déc. de 90. Hahahahah
Esse "chiado" eu já tinha ouvido falar de outras pessoas, dizem que é uma espécie de sinal de que você tá entrando de vez no transe. Bem doido você também mencionar isso. Depois vou até pesquisar mais sobre o assunto.
Eu não li a reportagem da Super, mas lembro que li uma outra capa sobre EQM mais antiga e a posição da matéria era semelhante. Interessante esse "desafio ao dualismo", nunca tinha pensado nesses termos (na época que li não conhecia nada sobre o assunto). Bem legal!
Parabéns pelo texto. Reitero minha inveja da sua capacidade de escrever tão bem! :P Consegue tratar de um tema "cascudo" como esse se fazendo entender perfeitamente e de uma forma bem leve (eu pelo menos, no mínimo ri pra caramba) sem fugir da questão.
Abraços, colega!
Muito bom Daniel! Resume bem a matéria e agrega um pouco mais!
ResponderExcluirPena mesmo que o monismo parece estar vencendo esta parada, já que em algum recôndito da minha alma ainda desejo o dualismo... mas enfim! Antes viver a dura realidade da melhor maneira do que uma doce e ingênua fantasia.
Aline, com certeza tem gente sonhando, como eu, com o Majin Boo até hoje! E realmente não há nada mais extasiante que lançar jorros de kamehamehas!
ResponderExcluirE fico muito feliz por suas palavras, Aline! Realmente é um tema delicado e complexo... e eu tenho sentido que trazer minhas vivências malucas como ilustração tem sido uma forma efetiva de fazer da leitura algo mais aprazível e inteligível. Continuarei assim!
Duduziuz, sua última frase resume bem o que penso... mas acho que podemos fazer de uma vida finita uma experiência doce e cheia de sentido!
Abraços!