domingo, 23 de outubro de 2011

Ciência Espírita

Eles são cientistas. E eles acreditam em espíritos e reencarnação. Agora, estão usando o laboratório para provar que tudo isso não é apenas questão de fé. E dizem que estão conseguindo.

O excerto supracitado é a manchete da Super Interessante deste mês (outubro de 2011). Embora convidativa e exagerada, como costuma ser quase toda capa de revista, a matéria não se limita a relatar anedotas que dão um frio na barriga. Em contraste, os autores (Nogueira e Castro) tiveram o escrúpulo de contar o outro lado da história: o fato de que pesquisas sérias acerca do tema estão apenas começando, bem como, e principalmente, que não há dados empíricos que corroborem a tese de que corpo e mente (ou alma) são entidades de natureza ou substância distinta. Contudo, e se isso for verdade, o que dizer das experiências extracorpóreas que praticantes de meditação, pacientes de enfarte e sobreviventes de acidentes relatam?


Quase lá: uma visão do além

No final do século passado, van Lommel e seus colegas queriam saber se um punhado de pacientes acometidos por parada cardíaca tiveram o que tem sido chamado experiência de quase-morte (EQM). Em situações cujo risco de morrer é alto, como ao cair de precipícios, sofrer acidentes de trânsito ou passar por afogamentos, alguns sobreviventes relatam experiências atípicas, às vezes extasiantes, que sugerem a existência do além. Algumas dessas vivências são "se ver fora do corpo", "encontrar com entes falecidos", "ser tomado por sensações agradáveis" e "visualizar luzes ou túneis". No estudo que publicaram na revista The Lancet em 2001, Lommel e cols. relataram que 62 dos 344 pacientes (18%) entrevistados tiveram (ou recordaram de) uma EQM. Antes de serem trazidos de volta à consciência pela equipe médica, constatou-se que o registro miográfico desses pacientes estava plano, zerado, o que os caracterizava como clinicamente mortos. Com efeito, esses pesquisadores tomaram seus relatos como um indício de que a consciência, ou a alma, é uma instância que independe do corpo material, tese comumente denominada dualismo de substância.

Os entusiastas do dualismo costumam se armar com anedotas no mínimo arrepiantes. Para tomar um exemplo da Super, um major aposentado viu-se, do teto, deitado na maca à medida que recebia, para ser ressuscitado, descargas elétricas no peito. E viu também a esposa, então de vermelho, que o aguardava apreensiva no cômodo ao lado. Após ser tragado de volta para o corpo, o militar espantou-se ao notar que sua amada estava de fato com a vestimenta vermelha que avistara! Em um caso descrito no artigo de Lommel, um homem em coma teria notado, de fora do corpo, uma enfermeira levar sua dentadura em um carrinho de tralhas. Quando desperto, dias depois, trombou com a enfermeira e lhe pediu seus dentes postiços. O paciente, tendo acertado na mosca (ou na enfermeira), teve de volta seu sorriso e ganhou atenção diferenciada da mídia e da equipe médica.

Lommel e cols., na discussão de seu estudo, deixaram uma mensagem provocadora:

Na falta de evidência para qualquer teoria da EQM [...] o conceito de que a consciência e a memória estão localizados no cérebro deve ser discutido. Como pode uma clara consciência fora de seu corpo ser experienciada à medida que o cérebro não funciona no período de morte clínica [...]?

Meditação: uma espiadinha no lado de lá?

Há cerca de seis ou sete anos atrás, eu vinha praticando meditação regularmente. Tive experiências estranhas com essa técnica, como quando senti-me flutuando, esticando ou encolhendo, reduzido a duas dimensões e possuído por repentinas sensações orgásticas. Mas minha primeira experiência profunda foi, ao menos inicialmente, estarrecedora: senti-me paralisado, fora do corpo e, à medida que era puxado, com a inequívoca impressão de que estava à beira da morte! O que motivou minhas aventuras meditativas posteriores foi minha extrema curiosidade e o desfecho deleitoso daquela experiência: fã declarado do anime Dragon Ball, fui não por acaso contemplado com o poder de voar e de descarregar torrentes luminosas de energia em um misterioso local vazio (algo como tiros consecutivos de kamehamehas)! É provável que eu nunca tenha acordado tão descansado e maravilhado como na manhã do dia seguinte. Enquanto estive por lá, lembro de pensar ininterruptamente: "Não quero jamais sair daqui... jamais!".

Goku lançando um poderoso kamehameha.

Cerca de um ano após essa primeira experiência, algo curioso aconteceu. No meu quarto, então dividido com um dos meus irmãos, deitei e comecei a meditar. Em meio ao chiado estranho que costumava preencher meus ouvidos nessas ocasiões, meu corpo adormecia lentamente... e minha consciência se segurava por apenas um fio, em seu limiar mínimo, como que lutando contra a investida do sono. Passado algum tempo, eis que me deparo com uma cena inusitada: meu corpo na cama, estendido, e eu do lado de fora! Assustado, olho para os lados e começo a caminhar, casa adentro, indagando se tudo aquilo era mesmo real. Sem resistir por mais que alguns passos pelo corredor, senti-me sugado de volta -- era tempo de despertar. Numa espécie de errado que deu certo, defrontei-me com uma incoerência que fez calar meu desejo de acreditar nas implicações sobrenaturais daquelas experiências: desperto, notei que eu não estava na cama da esquerda, tal como percebera durante a meditação, mas na da direita! Aquela vivência espetacular, em vez de se referir a uma pista de que corpo e alma são coisas dessemelhantes, pareceu-me dizer de uma construção que meu cérebro fez com base em memórias remotas e em eventos que imediatamente a antecederam. Em memórias remotas porque, devo esclarecer, eu sempre dormi na cama da esquerda, e não na da direita. Então, e à medida que foi sendo criado aquele sonho induzido (chamado pelos místicos de viagem astral ou projeção), foram sendo misturados elementos recentes (estar deitado em meu quarto e a meditar) com elementos remotos (estar deitado na cama onde costumava, por anos, dormir). Bingo: a incoerência dos cenários fez crescer com vigor a tese monista! Foi a segunda vez que vi brotar em mim um senso cético tão forte e animador.(1)

O lado cético da história

Como aludi inicialmente, os autores da matéria da Super são inteligentes. Em razão de carimbarem na chamada da matéria a insinuação de que o dualismo vem sendo empiricamente ratificado, tanto o crente como o cético ficam instados a comprar a revista. Contudo, e a fim de se resguardar da crítica intelectual, trazem embutidos avisos que contrariam sua jogada propagandística. Esses avisos são "o lado cético da história", que deve ser salientado mas que é comumente negligenciado por certos, para não dizer inúmeros, leitores (sobretudo os que crêem em eventos e entidades sobrenaturais). Passo a ilustrar, com um trecho, esse lado da matéria:

A maior parte dos pesquisadores entende que [as EQMs] não passam de uma confusão cerebral. No momento de uma parada cardíaca [por exemplo], a perda de oxigênio faz com que a massa cinzenta deixe de distinguir realidade e fantasia. Balançada pela desordem, recorre à memória de curto prazo para compreender a situação. Então se depara com cenas que acabou de registrar, como a própria sala de cirurgia [...] e nos prega uma peça. Todas as nossas lembranças registram uma visão panorâmica, como uma imagem de um filme, em terceira pessoa, criando a sensação de estarmos fora do próprio corpo. [...] O cérebro é um diretor de cinema. E o seu corpo, o protagonista (pp. 61-62).

Um parente meu, ao ser submetido a uma neurocirurgia, visualizou ele próprio sendo carregado por um falecido padre mineiro de quem é devoto e que é, por muitos, considerado como santo. Por vários dias, e provavelmente momentos antes do procedimento operatório, ele direcionou preces fervorosas àquela aclamada santidade. Não só com elementos próximos ou remotos, como a movimentação de uma sala de cirurgia ou uma boa-cama-para-se-meditar, o cérebro parece configurar um cenário onírico com base em crenças, desejos e expectativas daqueles que vivem uma EQM (ou algo similar a uma). O momento aprazível e confortável sentido pelo meu parente parece ter sido associado, em seu histórico de experiências, à figura zelosa de padre Libério, o milagroso que o protegeria. No meu caso, o prazer, a soltura do corpo e a sensação de poder estiveram associados às aventuras que, na pele de Goku, acompanhei empática e energicamente na adolescência.

ResearchBlogging.orgNem todas as pessoas vêem túneis e entes falecidos, e o que vêem é provavelmente fundado em experiências prévias que, por algum motivo, foram associadas àquele perfil de funcionamento neurobiológico. O estudo de Lommel e cols., por exemplo, constatou que apenas 15 dos 62 pacientes (24%) relataram ter tido uma experiência extracorporal, enquanto 32% disseram ter encontrado com parentes falecidos. Em um artigo que acaba de sair do forno,(2) Mobbs e Watt (2011) comentam que o conteúdo das EQMs covaria com a liberação anormal, modulada por drogas (como as administradas em intervenções médicas) ou situações adversas, de neurotransmissores como a dopamina, a noradrenalina e os opióides. Os autores ressaltam que experiências extracorpóreas podem resultar não só de EQMs, mas de condições como a paralisia do sono e a estimulação de sítios neurais como a junção temporoparietal. Na verdade, pouco mais da metade (51%) dos fenômenos rotulados como EQMs não envolve risco de morte real. E alguns de seus conteúdos, como alucinações com fantasmas, entes falecidos ou monstros, são ocasionalmente descritos por pacientes com Alzheimer ou Parkinson, cujos perfis neuroquímicos encontram-se assaz alterados. Ao final, os autores concluem que "a evidência científica sugere que todos os aspectos da experiência de quase-morte tem uma base fisiológica ou neuropsicológica".

Contra toda a rede de explicações psicológicas e neurobiológicas, alguns defensores do dualismo lembram que, como no estudo de Lommel, os pacientes que passaram por uma EQM tiveram cessadas suas atividades cardiocirculatórias ou, como em outros estudos, cerebrais. Contudo, e como levantado na matéria da Super, o eletroencefalograma registra essencialmente a atividade do córtex cerebral, a camada superficial do cérebro. Regiões subcorticais (que são mais profundas) podem, portanto, continuar em atividade sem que os aparelhos as detectem. Mas uma hipótese alternativa, ou mesmo complementar, é a seguinte: fenômenos como as EQMs acontecem antes da constatação da morte clínica ou da perda de consciência, e não enquanto. Pouco antes de se desligar, a ideia de estar sofrendo um enfarte ou um afogamento poderia, em instantes, gerar um rico cenário onírico, então permeado por elementos que circundam a vítima (como a equipe médica) e por crenças e expectativas preconcebidas (como reencontrar entes falecidos ou ser acalentado por um santo). O tom dessa espécie de sonho, ademais, seria regulado pelo balanço químico produzido pela experiência em questão (enfarte, submissão a drogas ou meditação). Vejo essa hipótese, mais razoável do que a alternativa, como uma síntese do que foi trazido pela Super e pelo artigo de Mobbs e Watt (2011).

Considerações finais

O debate acerca da dualidade corpo-mente (ou espírito) deve perdurar por mais algumas gerações. À medida que a ciência avança, contudo, explicações mágicas e sobrenaturais vão perdendo seu espaço. Imagino que o problema mente-cérebro seja uma das últimas e mais profundas trincheiras nas quais crenças religiosas mantém-se protegidas contra as investidas céticas. Se podemos provar que a Terra é redonda, que não é o centro do Universo e que não tem seis ou oito mil anos, e se temos evidência de que a origem das espécies não decorre do dedo de um projetista poderoso, resta-nos mostrar consistentemente por que a tese de uma vida eterna e espiritual é incoerente. Como fazer isso? Ao lado das evidências indiretas da neurociência, é possível que as EQMs possam nos ajudar.

O estudo do cardiologista Sam Parnia e do neurologista Peter Fenwick ilustra o que pode ser feito. Como descrito na Super, esses pesquisadores instalaram "150 placas pelo hospital, com sinais, textos e desenhos virados para cima, posicionados de tal maneira que apenas alguém localizado no teto poderia ler. [Se] um paciente contasse o que havia na placa, a experiência fora do corpo estaria comprovada" (p. 60). Mas nenhum dos 63 pacientes ressuscitados alegou ter feito uma viagem espiritual, e a experiência mostrou-se um fracasso. Não sei se outros trabalhos dessa natureza foram realizados desde então; sei que os vejo como uma forma de sairmos das anedotas, que às vezes são fomentadas pelo desejo de visibilidade ou por vieses de pesquisa, e encararmos o problema de forma séria.

Alguns, como eu, são contemplados com a chance de ver com os próprios olhos a incoerência do dualismo (e, é claro, com as condições sociais adequadas para que o ceticismo e o conhecimento científico floresçam). Outros, que compõem a maioria, são enganados pela forma como parte de si mesmo funciona -- isto é, pelas peças casualmente pregadas pelo cérebro. Como cético e um pouquinho entendido de neurociência, devolvo a provocação a Lommel:

Diante do pesado conjunto de evidências que sustenta a tese de que a mente é um produto da atividade do encéfalo (ou que é essa atividade), o conceito popular de que memória e consciência são coisas imateriais deve ser discutido.


Notas

(1) A primeira vez foi quando, no sítio de meus pais, descobri que os supostos alienígenas que estavam no telhado tentando me abduzir eram, como fui conferir na alvorada, galinhas d'angola.

(2) Devo agradecer ao meu colega André Rabelo pelo encaminhamento do artigo.

Referências 


  • Mobbs, D., & Watt, C. (2011). There is nothing paranormal about near-death experiences: how neuroscience can explain seeing bright lights, meeting the dead, or being convinced your are one of them. Trends in Cognitive Sciences, 15(10), 447-449. Elsevier Ltd.
  • Nogueira, P, & Castro, C. (2011). Ciência Espírita. Super Interessante, ed. 296. São Paulo: Editora Abril.
  • Owens, J.E. et al. (1990) Features of near-death experiences in relation to whether or not the patient were near death. Lancet 336, 1175-1177.
  • van Lommel, P., van Wees, R., Meyers, V., & Elfferich, I. (2001). Near-death experience in survivors of cardiac arrest: a prospective study in the Netherlands The Lancet, 358 (9298), 2039-2045 DOI: 10.1016/S0140-6736(01)07100-8

5 comentários:

  1. Muito bom, Daniel!

    Parabéns pelo texto. Já estou recomendando ele a várias pessoas.

    Abraços

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  2. Obrigado, Pedro! Embora eu não tenha tido todo o cuidado ao escrevê-lo, espero que ele esteja acessível ao público em geral...

    Abraço!

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  3. Poxa, Daniel, tinha escrito um comentário gigante aqui e deu erro na hora de enviar... argh...

    Hehe, enfim, confesso que ri DEMAIS com suas experiências místicas. Eu, quando tentava meditar, no máximo me concentrava no meu joelho coçando ou no barulho em volta. Você tem uma tendência maravilhosa a ter essas sensações malucas, pelo jeito. Fiquei pensando em quantos meninos místicos o Dragon Ball Z criou na déc. de 90. Hahahahah

    Esse "chiado" eu já tinha ouvido falar de outras pessoas, dizem que é uma espécie de sinal de que você tá entrando de vez no transe. Bem doido você também mencionar isso. Depois vou até pesquisar mais sobre o assunto.

    Eu não li a reportagem da Super, mas lembro que li uma outra capa sobre EQM mais antiga e a posição da matéria era semelhante. Interessante esse "desafio ao dualismo", nunca tinha pensado nesses termos (na época que li não conhecia nada sobre o assunto). Bem legal!

    Parabéns pelo texto. Reitero minha inveja da sua capacidade de escrever tão bem! :P Consegue tratar de um tema "cascudo" como esse se fazendo entender perfeitamente e de uma forma bem leve (eu pelo menos, no mínimo ri pra caramba) sem fugir da questão.

    Abraços, colega!

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  4. Muito bom Daniel! Resume bem a matéria e agrega um pouco mais!

    Pena mesmo que o monismo parece estar vencendo esta parada, já que em algum recôndito da minha alma ainda desejo o dualismo... mas enfim! Antes viver a dura realidade da melhor maneira do que uma doce e ingênua fantasia.

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  5. Aline, com certeza tem gente sonhando, como eu, com o Majin Boo até hoje! E realmente não há nada mais extasiante que lançar jorros de kamehamehas!

    E fico muito feliz por suas palavras, Aline! Realmente é um tema delicado e complexo... e eu tenho sentido que trazer minhas vivências malucas como ilustração tem sido uma forma efetiva de fazer da leitura algo mais aprazível e inteligível. Continuarei assim!

    Duduziuz, sua última frase resume bem o que penso... mas acho que podemos fazer de uma vida finita uma experiência doce e cheia de sentido!

    Abraços!

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