Nicolelis, Aurora e seu braço robótico |
Suco de laranja: "Dê um pouco, e eu aprendo o inimaginável"
Nicolelis
e sua equipe, tendo em mãos um protocolo experimental inovador, tinham
como objetivo ensinar Aurora a cumprir uma tarefa
computadorizada utilizando apenas o pensamento. Diante de si, a
protagonista do experimento via um monitor de cristal líquido no qual um círculo e uma bolinha brancos estavam dispostos. Basicamente, a tarefa
consistia em direcionar a bolinha, controlada por um joystick (que
cumpria a função de mouse), para dentro do círculo. A cada novo ensaio, o círculo mudava de lugar. Em meio a uma porção de movimentos, o comportamento de levar a bolinha para dentro do círculo foi sendo
seletivamente recompensado (ou melhor, reforçado) com doses de um delicioso suco de laranja brasileiro.
À medida que nossa parente primata vinha se tornando expert
naquele jogo, microeletrodos captavam a atividade de 96 neurônios
distribuídos em seis áreas corticais. Os sinais desses neurônios
(chamados por Nicolelis de "sinfonias neurais"), uma vez filtrados
e amplificados por microchips, eram então enviados a um microcomputador
que os convertia em sinais digitais. Quase que simultaneamente, uma
fita recheada de sensores captava e transmitia ao mesmo microcomputador
parâmetros cinéticos do ombro, do cotovelo e do pulso de Aurora. A importância
de se registrar tanto os parâmetros de disparo neural como os parâmetros
cinéticos, que controlava o joystick, é óbvia: os primeiros controlam os segundos, isto é, os movimentos do braço são causados pela atividade do cérebro. A análise correlacional desses dois parâmetros foi tão extensa e precisa que, com base apenas nos sinais neurais, os pesquisadores passaram a prever qual seria o próximo movimento de Aurora.
A atividade neural pode ser captada, codificada digitalmente e ser usada para controlar o movimento de neuropróteses, como um braço ou pernas robóticas. |
Em seguida, Nicolelis e sua equipe decidiram testar
se, só pelo pensamento, um braço robótico poderia ser controlado por Aurora. Com o joystick longe de suas mãos, ela não demorou para perceber que, diante da tarefa previamente dominada,
bastava simplesmente imaginar os movimentos que fizera outrora, e
seus desejos (receber goles de suco de fruta) se
concretizariam como que num passe de mágica! Por
mediação do microcomputador, o braço robótico (com o joystick) passou a ser fielmente comandado pelo
pensamento da macaquinha. Conforme interpretou Nicolelis, Aurora aprendera
que querer é poder.
Admirável mundo por vir
No último capítulo de seu livro, denominado De volta para as estrelas,
Nicolelis especula livremente sobre possíveis aplicações das ICMs num futuro mais ou menos distante. Em razão da
capacidade do cérebro de assimilar ferramentas -- como quando Pelé,
Ayrton Senna, Santos Dumont e Aurora tomaram como partes de si,
respectivamente, bolas de futebol, carros de Fórmula 1, aviões e braços
metálicos --, o autor acredita que as ICMs poderão tanto "restaurar a
vida daqueles que são afligidos por quaisquer danos neurológicos" como
"permitir a expansão de nossa percepção e ação no universo" (p. 470). No
que se refere à área médica, pacientes acometidos por moléstias
neurológicas poderão voltar a ouvir, falar, ver, tocar e andar. Por
exemplo, um dos projetos que Nicolelis ajudou a fundar, o The Walk Again Project (Projeto Andar Novamente), visa "desenvolver e implementar a primeira
ICM capaz de restaurar a mobilidade corporal completa de pacientes
vítimas de graus severos de paralisia" (p. 471). Esses pacientes poderão
controlar, pelo pensamento, movimentos complexos de exoesqueletos (vestes robóticas) de corpo inteiro, de tal forma que possam ser
modulados seus membros superiores e inferiores, sua postura e a
deambulação corporal. O pesquisador, em um tom ousado e animador, prevê
que,
depois de algumas semanas de interação com o exoesqueleto, o cérebro de nosso futuro paciente completará o processo de incorporação dessa veste robótica através de um processo de plasticidade neural, como uma extensão verdadeira da imagem corporal que reside nele. Nesse momento, o usuário provavelmente se tornará proficiente na operação do exoesqueleto controlado pela ICM, podendo então voltar a se mover livre e autonomamente pelo mundo (p. 475).
Perto do fim, Nicolelis aproxima suas especulações à fantasia
-- e quase à religiosidade. Se em um momento ele afirma que uma teia
organizada de cérebros em comunicação poderia configurar uma fusão coletiva de mentes, ele posteriormente levanta a possibilidade de se registrar perenemente a
experiência subjetiva de cada indivíduo humano! O autor não revela
detalhes de como essas façanhas poderiam ser arquitetadas. Pelo
contrário, prossegue com sentenças cada vez mais estranhas, e quiçá irônicas, como a de que poderíamos coroar
"o cérebro relativista de primata como a única trindade significativa a
nos conceder suas bênçãos" (p. 495). Mas a mensagem básica é clara: o cientista brasileiro crê que o
desenvolvimento e a assimilação social de ICMs ditarão uma
mudança notável na forma como concebemos o senso de eu e, de forma geral, o que
entendemos por realidade.
Na
dúvida saudável de se todo esse devaneio irá se
concretizar, resta-nos, sobretudo para quem não teme o avanço
tecnológico, pegar carona em extasiantes enredos como Matrix e Avatar -- obras cinematográficas que abrem caminho à experimentação de um admirável e possível, embora às vezes dramático, mundo por vir.
Nota
(1) Para uma resenha crítica do livro, ver Muito além do muito além do nosso eu, escrita por Eli Vieira (2011).
Referência
- Nicolelis, M. (2011). Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas -- e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras.
Não seria Matrix?
ResponderExcluirÉ realmente desafiador o trabalho científico que está sendo realizado,e o mais importante, é que isto acontece com um brasilleiro na realização.Nessa hora devemos dizer que temos orgulho deser brasileiro.
ResponderExcluirMas mudando de um polo ao outro, gstaria muito de saber se ele,uma cabeça tão diferente da maioria das pessoas, acredita em Deus.
Olá, anônimo,
ResponderExcluirEu não me lembro de ele se referir a esse assunto no livro. Imagino que, como acontece com neurocientistas populares como Antônio Damásio, ele queira evitar se posicionar (para não desagradar céticos ou religiosos). Mas e você, em que sentido acha essa questão relevante para os trabalhos do Nicolelis?
oi Daniel,
ExcluirRealmente ele não faz qualquer referência a isso no livro. Contudo, nesta entrevista que Nicolelis concedeu à revista Planeta - http://migre.me/844sG - ele afirma ser ateu.
Sou admiradora do trabalho dele e da sua postura em relação ao acesso à pesquisa científica. E me impressiono toda vez que assisto aos videos de Auroa e Idoya em ação. É quase surreal.
Bacana, Cristine. Embora ele não faça uma referência direta sobre isso no livro, ele me pareceu tratar disso de maneira indireta ao dizer que poderíamos coroar "o cérebro relativista de primata como a única trindade significativa a nos conceder suas bênçãos" (p. 495). Pode ser forçosa a minha interpretação, mas o contexto de suas teses parece justificá-la.
ResponderExcluirObrigado pela participação. Um abraço!