sábado, 5 de novembro de 2011

Inteligência: capacidade de ser feliz?

Parece haver um consenso de que inteligência é um dos construtos mais polêmicos da psicologia. Mas é também um dos mais caros, sendo eventualmente considerado como a dimensão psicológica mais estudada e estabelecida (Flores-Mendoza, 2010). No entanto, se uma miríade de estudos concebe status especial à sua medida, então calculada e nomeada enquanto fator g ou como QI, outros tantos levantam uma série de críticas. A mais popular delas é a de que não existe a inteligência, mas as inteligências, sendo Daniel Goleman comum e prontamente lembrado por cunhar o termo inteligência emocional. Howard Gardner, um pouco menos modesto, levanta a bandeira das inteligências múltiplas, e o faz ao postular que cada habilidade específica, como os raciocínios numérico, espacial e interpessoal, referem-se a inteligências autônomas, isoladas. Tendo outrora exposto uma alternativa a esse tipo de tese, quero agora desenvolver algumas considerações sobre uma proposição curiosa: a de que a definição de inteligência deve estar vinculada à capacidade de ser feliz.


O que é i
nteligência?

Em um texto que publiquei há pouco mais de um ano, comentei que a comunidade científica, tal como concluído por Colom (2006), define inteligência como a capacidade de aprendizagem, raciocínio e resolução de problemas. E descrevi, ainda, os seguintes pontos:

  • As pessoas diferem em sua capacidade geral para raciocinar, resolver problemas e aprender;
  • Essa capacidade pode ser medida por meio de testes padronizados;
  • As diferenças dessa capacidade devem-se à influência conjunta de diferenças genéticas e ambientais.

O primeiro ponto merece ser discutido.

Alguém poderia indagar, por exemplo, de que tipo de aprendizagem, raciocínio e resolução de problemas estamos tratando. Gardner e Goleman diriam que a forma como uma pessoa resolve conflitos interpessoais deveria ser avaliada e agregada a uma concepção de inteligência. Não podemos negar que a interação com outras pessoas é aprendida, envolve raciocínio e pode ser vista como um problema a ser solucionado. Dessa forma, não teríamos por que comprar briga com a tese das inteligências múltiplas.

Alternativamente, um estudo conduzido por Sternberg (1981), então descrito por Colom (2006), parece ajudar a restringir o conceito. Quando indagadas sobre que comportamentos caracterizam uma pessoa inteligente, leigos apontaram "falar com clareza e fluidez", "raciocinar com lógica", " identificar relações entre ideias", "ver todas as variantes de um problema", "ser um bom conversador", "dominar uma determinada área do conhecimento", "manter a mente aberta" e "interessar-se pelas coisas do mundo em geral". Nessa lista, e com exceção de "ser um bom conversador", não há traços exclusiva ou predominantemente emitidos em situações interpessoais. Notamos, ademais, que aqueles traços não guardam relação íntima com as emoções. Em contraste, se fosse solicitado às pessoas apontar que características definem como alguém é, por certo ouviríamos "extrovertido", "responsável", "amável", "relaxado" e "aberto" -- com algumas variações e ao lado de seus antônimos.(1) Embora os adjetivos "inteligente" e "bonito" possam surgir, contarão pouco para a configuração do construto que chamamos personalidade.

Ao escrever o capítulo O que é inteligência?, Roberto Colom (2006) quis ressaltar que leigos e cientistas possuem uma noção significativamente próxima do que são comportamentos inteligentes. Há uma divisão nítida e consistente, embora possa haver sutis sobreposições, entre os traços de inteligência e os traços de personalidade. E leigos, psicoterapeutas, cientistas, órgãos públicos e empresários estão, de forma geral, notavelmente interessados em classificações e avaliações comportamentais.

Inteligência é uma coisa; personalidade, outra.

Se podemos dizer que a psicologia é a ciência do comportamento, é inevitável querermos classificar comportamentos. Organizar coisas ou eventos em categorias ou classes é um comportamento deveras comum e assaz prático, funcional, sendo emitido tanto por pesquisadores como pelos leigos. Um punhado de comportamentos restringe o que é ser extrovertido; outro, responsável; e outro, amável. Os pesquisadores adotam certos critérios, como o psicoléxico, para enxugar ou reduzir uma diversidade exaustiva de traços em um número com o qual possam trabalhar; e procuram agrupar esses traços em conjuntos, então relacionados por características comuns, e dá-los nomes. Personalidade e inteligência são frutos dessa economia conceitual.

Em seu artigo "A psicologia pode ser uma ciência da mente?", Skinner (1990) assevera que

a inteligência [...] é claramente uma inferência a partir de amostras de comportamento em testes de inteligência, e uma análise de diferentes tipos de inteligência é uma análise de diferentes tipos de comportamento.

Skinner critica a concepção, popular e acadêmica, de conceber inteligência como uma coisa ou uma entidade inferida (um construto) que estaria dentro do indivíduo. Alternativamente, e em conformidade com o pai do behaviorismo radical, o filósofo Gilbert Ryle (1949/1980) propõe que "os desempenhos inteligentes abertos [ou diretamente observáveis] não são um vestígio do trabalho das mentes": eles são esse trabalho. Não importa que o raciocínio seja um comportamento privado, estando portanto distante do olhar atento e sistemático do pesquisador; importa que as atividades mentais, enquanto ocorrências, eventos ou respostas contextualizadas, fazem parte de uma cadeia comportamental que pode ser, sobretudo por respostas motoras (como o escrever) e fonoarticulatórias (ou verbais), avaliadas -- essas respostas (como quando escolhemos uma figura complexa em detrimento de outras, respondemos à pergunta "Quem foi Santos Dumont?" e resolvemos cálculos matemáticos) podem ser observadas, quantificadas e classificadas conforme os parâmetros de uma população.

As respostas contingentes a um teste de inteligência, como somar, abstrair e definir palavras, são previamente especificadas: os pesquisadores, com base em dados, teorias e conceitos, definem que tipos de comportamentos serão avaliados. Desconfio com veemência que comportamentos ditos inteligentes sejam definidos em razão das funções que comumente cumprem -- ou das consequências que geram em certas circunstâncias. Se são notáveis as consequências de se conviver com uma pessoa extrovertida, irresponsável e ansiosa, decerto há motivos por que notamos e chamamos de inteligentes certas classes comportamentais -- ou a diferença com que alunos aprendem, com que colegas jogam e com que funcionários trabalham, por exemplo, passaria despercebida.
 
Sim: inteligência pode ser vista como a capacidade para aprender, raciocinar e resolver problemas. Talvez até possamos, como sugeriu o cientista cognitivista Steven Pinker (1999), tratá-la enxutamente como a capacidade de conquistar objetivos em face de obstáculos. Contudo, se não especificarmos os obstáculos e os objetivos, tudo se transforma em amostras ou tipos de inteligência: o jogar futebol, o cozinhar e o varrer, o se relacionar romanticamente e o dirigir automóveis. No entanto, e se a tese das inteligências múltiplas vencer,(2) os cogno-proficientes continuarão a ser videntes em terra de míopes. Caso a definição tradicional de inteligência seja dissolvida, as pessoas que falam com clareza e fluidez, raciocinam com lógica e interessam-se pelas coisas do mundo em geral provavelmente permanecerão notáveis. Por conseguinte, esse conjunto de habilidades receberá um nome especial, a cogno-proficiência, que então seria, em razão de interesses clínicos, educacionais, empresariais e governamentais, alvo de inúmeros instrumentos de avaliação e de intervenções.

A supervalorização e o trato científico das condutas inteligentes foram provavelmente fomentados pela revolução industrial. Comportamentos como ler e compreender textos, calcular, raciocinar abstratamente, ser rápido no gatilho e se especializar em certas áreas do conhecimento são pré-requisitos para se conseguir empregos satisfatórios. A exigência cumulativa por currículos melhores promoveu o efeito Flynn, ou o aumento da inteligência ao longo do século passado. Não posso dizer se as pessoas vêm sendo cada vez mais felizes, mas é indubitável que vêm ficando mais inteligentes.

Inteligência e felicidade

O psicólogo e mestre em filosofia Daniel Grandinetti, meu xará, publicou em seu blogue uma tese inovadora: a de que a felicidade deveria ser incluída na definição do que é ser inteligente. Em seu texto "O que é a inteligência e qual sua relação com a felicidade", Grandinetti comenta acertadamente que "desde cedo aprendemos a chamar de 'inteligentes' aquelas pessoas que aprendem com facilidade e se saem bem na escola, ou simplesmente aquelas que são eruditas e sabem falar de tudo um pouco". Nesse momento, ressalta-se o aspecto funcional do uso de qualquer rótulo, termo ou adjetivo pessoal: classificar ou identificar pessoas conforme a regularidade e a frequência com que se comportam de tal ou qual maneira. No entanto, meu colega procura alertar que a definição tradicional de inteligência, razoavelmente similar à que apresentei anteriormente, remete ao funcionamento de um computador ou um robô, e não ao de um ser humano. Vejamos:

Se estas definições se mostram insuficientes para caracterizar a inteligência humana, nem por isso devemos propor uma diferente. Talvez, o correto seja exatamente procurar a dimensão humana que está faltando a estas definições e [...] acrescentá-la. [...] A dimensão humana faltosa nas definições clássicas de inteligência não pode ser senão uma finalidade que não estaria ao alcance das máquinas; uma finalidade humana, ou, para não excluirmos levianamente os animais, uma finalidade cuja realização esteja restrita aos seres vivos. Segundo Aristóteles, a felicidade é o bem supremo buscado por todos os homens (Grandinetti, 2011).

Aproveitando a definição de Pinker, interpreto que Grandinetti está propondo que inteligência é a capacidade de ser feliz em face de obstáculos. Com base no filósofo Epicuro, meu colega comenta que "o homem feliz é aquele que se habitua às coisas simples", e não aquele que se entrega aos excessos -- uma suposta forma de "apaziguar o desejo por aquilo que não temos e o medo de perdermos o que já possuímos". O bem-estar do corpo e a serenidade do espírito, ou a felicidade, seriam a medida que define se um "conjunto de capacidades e habilidades representa de fato um alto QI". Ao final, conclui-se que um novo grupo de pessoas, ou os que vivem felizes por seguirem as recomendações epicuristas, comporia a classe dos inteligentemente superiores.

Em sua exposição, Grandinetti deve ser reconhecido por levantar um ponto que é às vezes omitido pelos pesquisadores em psicologia: o critério da finalidade ou das circunstâncias funcionais de um comportamento. Todavia, não vislumbro um prognóstico animador para a sua tese. Passo a me justificar:
.
  • Redefinir inteligência não fará que com que leigos, empresários, educadores, psicólogos e órgãos governamentais deixem de se interessar por aqueles comportamentos notáveis que, ao menos atualmente, são denominados inteligentes;
  • As classes comportamentais que compõem o "habituar às coisas simples" são ou podem ser, em grande parte, definidas como traços de personalidade;(3)
  • Na sociedade atual, imagino que os comportamentos preconizados por Epicuro não são notáveis, ou suficientemente valorizados, de tal forma que possam ter força para alavancar patentes mudanças conceituais;
  • Deve haver uma variedade exorbitante de comportamentos que contribuem para o quanto somos felizes, e não seria prático ou útil definirmos todos como inteligentes;
  • Aparentemente, felicidade é um conceito de difícil operacionalização, e isso implica em complicações na empreitada de se avaliar o grau em que uma pessoa é inteligente.

Em conclusão, não vejo por que adotar a definição de inteligência proposta por Grandinetti. Para aqueles que, mesmo sob condições adversas, batalham e conquistam seus objetivos, reservemos os termos perseverantes e resilientes; àqueles que não se entregam aos excessos e que agem de forma a assegurar consequências futuras, postergadas, responsáveis; e àqueles que estão frequentemente sorrindo e se sentem satisfeitos com a vida, felizes. Mesmo diante da saudável dúvida de se a felicidade é de fato a finalidade última de toda ação humana, há uma diversidade enumerável de subojetivos ou finalidades intermediárias que interferem na definição de classes comportamentais conspícuas. Desejaremos, como hoje o fazemos, classificar e avaliar esses comportamentos. Naquele mundo anteriormente hipotetizado, o grupo dos cogno-proficientes continuaria, mesmo que menos felizes, ou melhor, menos inteligentes, se destacando por suas façanhas. E a respeito das máquinas e dos robôs, não importa que não sejam humanos ou que não tenham emoções; importa que sejam, por fazerem o que fazem, inteligentes... ou que alcancem certos objetivos especificados -- os quais, a propósito, têm íntima relação com o bem-estar humano!

Mais algumas palavras

Talvez a maior dificuldade em se encontrar uma concepção precisa de inteligência derive da tendência que temos de tratá-la como uma coisa. Tal como o self, a personalidade e a consciência, a inteligência não deve ser vista como uma entidade concreta e passível de ser localizada pela lente do cientista; deve, antes, ser concebida como uma ocorrência ou um conjunto de respostas ou eventos que guardam, topográfica e/ou funcionalmente, características em comum.

Nos dias de hoje, parte dos problemas cuja resolução é notável estão impregnados de símbolos. A velocidade e a qualidade com que se fala, com que se pensa e se identifica relações entre ideias e o domínio que se tem de certas áreas do conhecimento são comportamentos que os envolvem, que geram consequências específicas e que podem ser avaliados. As pessoas diferem comportamentalmente umas das outras, e as diferenças comportamentais da referida classe, mas não apenas, são lidas como diferenças de inteligência.

Ao olhar para o céu, prosseguirei a me perguntar se os extraterrestres, felizes ou infelizes, estão por lá, bem como se são mais ou menos inteligentes que nós, seres humanos.




Notas

(1) "Amabilidade", "responsabilidade", "abertura", "extroversão-introversão" e "neuroticismo" são os cinco grandes fatores da personalidade usualmente estudados em psicologia diferencial.

(2) Para uma alternativa à tese das inteligências múltiplas, ver texto "Em busca da inteligência".

(3) É o que o construto inteligência emocional parece medir: um composto dos cinco grandes fatores de personalidade (Roberts et al., 2006).

Referências

  • Colom, R. (2006). O que é inteligência? Em Flores-Mendoza, C., & Colom, R. Introdução à psicologia das diferenças individuais. Porto Alegre: Artmed.
  • Flores-Mendoza, C. (2010). Inteligência Geral. In Malloy-Diniz, L. F., Fuentes, D. Mattos, Abreu, N. Avaliação Neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed, Cap. 5, p. 58-66.
  • Grandinetti, D. (2011, 30 de outubro). No gabinete do psicólogo. Recuperado em http://nogabinetedopsicologo.blogspot.com/2011/10/o-que-e-inteligencia-e-qual-sua-relacao.html#comments
  • Pinker, S. (1999). Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Roberts, R., Rouse, J., Zeidner, M., & Matthews, G. (2006). O status científico da inteligência emocional: consenso e controvérsias. Em Flores-Mendoza, C., & Colom, R. Introdução à psicologia das diferenças individuais. Porto Alegre: Artmed.
  • Ryle, G. (1980). The concept of mind. New York: Penguin Books. (Original publicado em 1949.) Em Lopes, C. E., & Abib, J. A. D. (2003). O behaviorismo radical como Filosofia da Mente. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(1), pp. 85-94.
  • Skinner, B. F. (1990). Can psychology be a science of mind? American Psychologist, 45(11), pp. 1206-1210.
  • Sternberg, R., Conway, B., Ketron, J., & Bernstein, M. (1981). People's conceptions of intelligence. Journal of Personality and Social Psychology, 41, 1, 37-55.

6 comentários:

  1. Acredito que toda a polêmica levantada por meu amigo e xará Daniel Foschetti em meu blog, e que foi sistemetaizada e reproduzida aqui, se resolva em grande parte numa resposta que ele mesmo me deu. Ao colocar a ele que:

    “Se uma pessoa é infeliz, e se avaliamos sua inteligência com relação à felicidade, as intervenções podem ser feitas no sentido de desenvolver aquelas faculdades que, dentro do contexto de vida dela, estão menos desenvolvidas e estão causando seu estado infeliz."

    Ele me respondeu que:

    “Fazemos isso enquanto psicólogos, e não precisamos de reformular um conceito para conduzir nossas análises e intervenções.”

    Assim, se o psicólogo clínico, em sua prática clínica, avalia que faculdades, dentro de seu contexto de vida, devem ser desenvolvidas para que ele alcance maior felicidade, ou mesmo deixe de ser infeliz, então a felicidade já está pressuposta enquanto finalidade do exercício desta faculdade. Por isso, não se trata de mudar o conceito de inteligência, mas sim de tornar explícito um conceito de inteligência que já vem sendo utilizado, de maneira velada, desde o início da psicoterapia como a conhecemos.

    Minha dissertação de mestrado foi sobre “A Teoria das Ações de Donald Davidson”. Lá, eu mostro que Davidson procura explicar uma ação a partir do desejo de executá-la e da crença de se estar fazendo o necessário para executá-la. Quando falamos de uma ação que está apenas planejada, mas ainda não foi executada, ela se explica pelo desejo de executá-la e pela crença do que é necessário fazer para tanto, e uma ação que já foi executada pelo desejo de tê-la executado e a crença de se ter feito o necessário para isso. Este conjunto desejo-crença constitui a ‘intenção’ ou a ‘razão’ para a ação ser executada, sendo a intenção ou a razão de uma ação a sua CAUSA, e o que nos permite distinguir entre uma ação e demais eventos.

    http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/BUBD-89LPGP/1/sum_rio.pdf

    http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/BUBD-89LPGP/2/daniel_grandinetti___a_teoria_das_a__es_de_donald_davidson__disserta__o_de__mestrado_.pdf

    Davidson foi um filósofo da mente americano, muito influente da metade do século XX até aqui e, como boa parte dos filósofos da mente americanos deste período, foi um grande crítico da psicologia americana que se desenvolveu simultaneamente, especialmente da psicologia comportamental. Enquanto a psicologia americana se esforçava por eliminar e substituir fatores como ‘desejo’ e ‘crença’ de suas análises, Davidson nadou contra a correnteza e elaborou uma teoria das ações que conta, até hoje, como uma das mais respeitadas explicações do comportamento humano. E, uma das razões para o sucesso de sua teoria é justamente a consistência com que ela nos permite conceituar e distinguir uma ‘ação’ de um evento qualquer, tal como o funcionamento de um computador e uma máquina.

    ResponderExcluir
  2. Se uma ação planejada se explica pelo desejo de executá-la e pela crença do que é necessário fazer para executá-la, enquanto uma ação em execução se explica pelo desejo de executá-la e pela crença de se estar fazendo o necessário para tanto, caso uma ação não consiga realizar sua intenção, muito se deve às falhas neste planejamento e na sua execução. Aristóteles já definia a capacidade de planejar e executar ações como ‘inteligência prática’. É desnecessário mostrar como os elementos que tradicionalmente entram na definição de inteligência estão em funcionamento neste planejamento e nesta execução.

    E, no que concerne ao desejo de executar a ação, este pode se desdobrar em muitas esferas. Por exemplo: (1) Eu tenho desejo de atear fogo em meu carro porque (2) desejo fraudar o seguro, e desejo fraudar o seguro porque (3) desejo receber o dinheiro da apólice (4), e desejo receber o desejo da apólice porque desejo me sentir seguro com ele em mãos. Davidson diz que todos estes desejos e todas as ações nas quais eles entram como explicação (atear fogo no carro, fraudar o seguro, receber o dinheiro da apólice e sentir-me seguro) o agente crê poder realizar e executar na execução de uma única ação: o atear fogo no carro. Na intenção de executar uma ação (atear fogo ao carro) está implícita uma série de outras intenções, de maneira que a última destas intenções (sentir-se seguro) consta como a ‘razão primária’ da ação, aquela razão que a explica. Penso ser desnecessário, mais uma vez, mostrar como neste encadeamento de intenções tudo o que geralmente denominamos ‘inteligente’ também está em funcionamento.

    A maneira como o agente encadeia suas intenções e tudo o que ele acredita ser preciso fazer para realizá-las define, da melhor maneira possível, a inteligência tal como nós, psicólogos clínicos, nos defrontamos com ela na prática clínica. E, partindo do princípio de que a intenção última de uma ação (sua razão primária) é o desejo de se sentir bem, satisfeito, etc., somos forçados a concluir que a inteligência deve ser definida em vista do alcance da finalidade de ser feliz. Esta é a melhor forma de fornecer uma definição especificamente humana de inteligência, e esta definição especificamente humana de inteligência é a que está implícita na prática de todo psicólogo clínico.

    ResponderExcluir
  3. Então, vejamos os contra-argumentos do Foschetti:

    “Contudo, se não especificarmos os obstáculos e os objetivos, tudo se transforma em amostras ou tipos de inteligência: o jogar futebol, o cozinhar e o varrer, o se relacionar romanticamente e o dirigir automóveis.”

    Assim como tudo que uma pessoa faz (inclusive o sentir e o pensar) é definido por Skinner como “resposta” ou “comportamento”, e assim como este tipo de generalização não torna a definição de ‘comportamento’ menos válida ou consistente, atribuir a todo comportamento a finalidade última da felicidade, e denominar a capacidade de o agente alcançar esta finalidade de ‘inteligência’ também não torna a definição de inteligência menos válida ou consistente.

    “No entanto, e se a tese das inteligências múltiplas vencer,(2) os cogno-proficientes continuarão a ser videntes em terra de míopes. Caso a definição tradicional de inteligência seja dissolvida, (Os cogno-proficientes) provavelmente permanecerão notáveis.”

    Eu realmente não entendo a validade deste tipo de argumento. Em meu blog, afirmei que meu amigo Foschetti fazia uso do “status quo” nas noções e conceitos que são utilizados hoje como argumento a favor da tese de que eles devem ser mantidos – e de que se manterão, efetivamente. Acho que ele faz a mesma coisa também no argumento abaixo:

    “Redefinir inteligência não fará que com que leigos, empresários, educadores, psicólogos e órgãos governamentais deixem de se interessar por aqueles comportamentos notáveis que, ao menos atualmente, são denominados inteligentes”

    Cada um é livre para se interessar pelo que achar melhor. Mas, para a prática clínica em geral, creio que acrescentar à definição de inteligência a finalidade da felicidade é a melhor maneira de nos tornarmos conscientes de um conceito que já usamos na prática.

    “As classes comportamentais que compõem o "habituar às coisas simples" são ou podem ser, em grande parte, definidas como traços de personalidade”

    O homem é uma unidade, não um Frankenstein formado por partes retiradas de corpos diversos. Assim, se falamos em ‘inteligência’, ‘personalidade’, ‘mente’, ‘corpo’, ‘relação inter-pessoal’ e ‘relação pessoal’, o mais provável é que, ao invés de estarmos falando de uma pluralidade de esferas que constituem o homem, estejamos descrevendo uma única esfera (a humana) por diversos pontos de vista diferentes.

    “Na sociedade atual, imagino que os comportamentos preconizados por Epicuro não são notáveis, ou suficientemente valorizados, de tal forma que possam ter força para alavancar patentes mudanças conceituais”

    Mais uma vez, o ‘status quo”.

    “Deve haver uma variedade exorbitante de comportamentos que contribuem para o quanto somos felizes, e não seria prático ou útil definirmos todos como inteligentes”

    Se é prático e útil definir toda ação como ‘comportamento’, por que não seria prático e útil defini-las como ‘inteligentes’?

    “Aparentemente, felicidade é um conceito de difícil operacionalização, e isso implica em complicações na empreitada de se avaliar o grau em que uma pessoa é inteligente”

    Agora, o status quo da ciência. Se felicidade é algo difícil de operacionalizar, isso não muda o fato de a felicidade ser a coisa mais importante da vida, e o objetivo da Psicologia. Assim, nossa obrigação é tratar de ‘inteligência’ da maneira mais adequada à psicologia clínica, seja o mais adequado à psicologia clínica aquilo que é mais adequado ao método científico ou não.

    ResponderExcluir
  4. Concordo quando você faz a sua conclusão sobre o assunto. Li, recentemente, sobre um estudo que resumidamente diz que as pessoas que consideram a inteligência como sendo algo "mutável" e dependente da aprendizagem e outras circunstâncias, conseguem sair melhor em testes e provas.
    Em relação ao comportamento, conheço pessoas inteligentes com comportamentos coerentes com o nível e pessoas que se consideram inteligentes, o que é mais legal, estúpidas e com comportamentos idiotas e imaturos.

    ResponderExcluir
  5. Caro Daniel,

    "Cada um é livre para se interessar pelo que achar melhor. Mas, para a prática clínica em geral, creio que acrescentar à definição de inteligência a finalidade da felicidade é a melhor maneira de nos tornarmos conscientes de um conceito que já usamos na prática."

    O que é requerido para que alguém seja feliz? Se estamos ajudando alguém a lidar com a morte de um ente querido, ou se o estamos ajudando a superar certas dificuldades em um relacionamento amoroso, deveríamos dizer que o estamos ajudando a ser mais inteligente? Se a resposta for positiva, não concorda que poderíamos e gostaríamos, apesar disso, de observar, classificar e avaliar uma diversidade de comportamentos envolvidos na resolução daqueles problemas? Vê que admitir que inteligência é a capacidade de ser feliz não exclui a necessidade da criação de categorias para tantos tipos de comportamentos cujas finalidades ou funções são específicas? Na prática, usamos o termo inteligência para dizer, em certos contextos, de classes comportamentais razoavelmente peculiares -- classes estas que se distinguem, como exemplifiquei, daquelas que recebem o nome de personalidade.

    "O homem é uma unidade, não um Frankenstein formado por partes retiradas de corpos diversos. Assim, se falamos em ‘inteligência’, ‘personalidade’, ‘mente’, ‘corpo’, ‘relação inter-pessoal’ e ‘relação pessoal’, o mais provável é que, ao invés de estarmos falando de uma pluralidade de esferas que constituem o homem, estejamos descrevendo uma única esfera (a humana) por diversos pontos de vista diferentes."

    Mesmo que seja, Daniel, não acha que isso é funcional? Não concorda que haja uma importância social, e não só científica, de se classificar comportamentos em categorias?

    "Se é prático e útil definir toda ação como ‘comportamento’, por que não seria prático e útil defini-las como ‘inteligentes’?"

    Comportamento é um termo que designa basicamente "relação contingencial de um organismo com o ambiente". Dentre as inumeráveis formas de se comportar, temos por exemplo o planejar, o calcular, o galantear, o falar em público, o dirigir, o escrever e o ler, o debater e o fazer sexo. Não vejo como chamar todo comportamento, que possui suas funções ou finalidades, de inteligência possa contribuir com ou acrescer algo às nossas teorias e práticas no campo da psicologia; e mesmo que o façamos, isto não tornará ociosas ou inúteis as categorias que normalmente utilizamos.

    ResponderExcluir
  6. Qual a necessidade de se usar termos como "desejo" ou "vontade" quando o que temos são apenas funções comportamento-contexto?.

    Seguinte, quando as pessoas do senso comum usam termos como inteligente, esperto, etc, elas estão se referindo a comportamentos públicos que observam ou seja a propriedades como eficácia, rapidez, ineditismo topográfico.

    Teóricos em Psicologia que na tentativa metafisica realista de achar uma "Causa" ou "Mecanismo" inventaram todo o mundo mental e cognitivo.

    Isso mesmo inventaram. E nós behavioristas dia a dia, ano a ano vamos desmontando e operacionalizando todo esse mundo fantasioso.

    ResponderExcluir