quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Medidas de inteligência

Conforme expus em uma outra ocasião, o conceito de "inteligência" empregado no senso comum não destoa, em essência, do conceito trabalhado na academia. De modo genérico, "inteligência" denota a capacidade geral para aprender, raciocinar e resolver problemas de conteúdo cognitivo. Podemos medi-la através de testes validados e padronizados, e seus dados têm sido largamente utilizados nas clínicas psicológica e educacional e em pesquisas inter, multi e transdisciplinares. A conceituação e as medidas da inteligência vinham sofrendo severos ataques até bem pouco tempo, mas nenhum modelo alternativo encarou satisfatoriamente os problemas da cognição e de sua mensuração. Tentarei, nos parágrafos subsequentes, conceituar e diferenciar duas medidas tradicionais da inteligência: o QI e o fator g.

QI: quociente de inteligência

Os testes que medem o QI, a medida de inteligência mais popularizada, representam uma tentativa de traduzir, em um único número, a capacidade intelectual das pessoas. Muitos desses testes são compostos por diversos subtestes que estariam avaliando nossas principais habilidades cognitivas. A terceira edição do Wechsler Adult Intelligence Scale (WAIS-III) é um bom exemplo. O WAIS-III é composto por doze subtestes fatorialmente divididos em duas escalas: a escala verbal e a escala de execução. O QI estimado pelo WAIS-III diz respeito à somatória padronizada da pontuação de seus doze subtestes. É possível -- e às vezes conveniente -- estimar o QI verbal isoladamente do QI de execução.

A expressão "somatória padronizada" merece ser discutida pormenorizadamente. Pessoas com um QI médio, convencionalmente padronizado em 100, são a maioria em uma população. Como ilustrado na figura abaixo, o gráfico que representa um grupo de pessoas em termos de sua inteligência costuma ter um formato de sino, the bell curve, também chamado curva normal. Com efeito, pela curva normal visualizamos nitidamente que os grupos de pessoas muito e pouco inteligentes (digamos, QI>130 e QI<70, respectivamente) são menores (variável %) quando comparados ao grupo de pessoas medianamente inteligentes (QI=100):



A padronização de testes psicológicos pode ser realizada diferencialmente por grupos. Por exemplo, apesar de que haja diferenças cognitivas notáveis entre crianças e adultos, tanto adultos como crianças intelectualmente medianas possuem um QI em torno de 100. O QI de uma pessoa diz respeito ao seu rendimento cognitivo dentro de um grupo de referência. A versão brasileira do teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, por exemplo, possui normas padronizadas especificamente para crianças que estudam em escolas públicas e para crianças que estudam em escolas privadas. Essa padronização diferenciada deveu-se a uma variação significativa de desempenho no teste em razão do tipo de escola que a criança frequentava. Disso decorre que, tanto qualitativa como quantitativamente, o conceito "inteligência média" (QI=100) precisa ser entendido dentro de um contexto/grupo específico.

Vale sublinhar que uma avaliação adequada da inteligência vai além do QI. Embora duas crianças tenham um mesmo QI, suas habilidades cognitivas específicas podem ser significativamente distintas. Imaginemos que uma dessas crianças acertou todos os itens do subteste Aritmética mas, em contrapartida, rendeu abaixo da média em Vocabulário. A outra criança, da mesma idade, pontuou medianamente nesses dois subtestes mas, em contrabalanço, ficou um pouco acima da média no subteste Cubos. (Esses três subtestes fazem parte da terceira edição do Wechsler Intelligence Scale for Children [WISC-III], uma escala de inteligência para crianças e adolescentes.) Portanto, e mesmo compartilhando um mesmo QI, duas crianças podem ser consideravelmente distintas em termos de suas habilidades cognitivas específicas.

Estudiosos como Howard Gardner, disseminador da Teoria das Inteligências Múltiplas, acreditam que essas flutuações de rendimento conforme o estilo de prova invalidam o conceito de inteligência geral. Não obstante seus investimentos argumentativos (comumente desprovidos de evidências estatísticas), a maior parte dos estudos atuais apontam para uma tendência homogênea de desempenho cognitivo. Por exemplo, e no caso dos testes WAIS e WISC-III, um rendimento médio em Vocabulário costuma acompanhar um rendimento médio em Aritmética. Embora seja possível, é bastante improvável que um bom matemático tenha um péssimo vocabulário. Esse fenômeno, quando apurado fatorialmente, tem reforçado a crença de que podemos dizer de uma inteligência geral.

O fator g de inteligência

Recorrerei, para explicar o fator g, a uma analogia simples. Pelé, o Rei do Futebol, embora fosse um péssimo nadador, possuía um rendimento acima da média em praticamente toda modalidade desportiva. Digamos -- e é provável que isso seja verdade -- que essa tendência à homogeneidade de rendimento não seja fruto do acaso. Pode ser que algumas habilidades requeridas no futebol influenciem também o desempenho no handball, no basquete e no tênis. Dessa forma, e após mensurar o desempenho de um atleta em diversas modalidades desportivas, deveríamos notar a existência de uma variável latente, hipotética, que explicaria boa parte da variância das variáveis (isto é, boa parte do rendimento em cada esporte). Essa variável, o "fator g desportivo", poderia ser denominada capacidade desportiva geral. Distante das lentes científicas, isto é, pela boca de admiradores e críticos do esporte, o termo "grande atleta" estaria captando, intuitivamente, a expressão dessa variável. Da mesma forma, e dentro do campo da Psicometria, o "fator g de inteligência" é o construto que regula e amarra grande parte de nossas habilidades cognitivas. Sua expressão, em termos de desempenho cognitivo, também não deixa de ser captada pelo senso comum.

Teorias fatoriais da inteligência tentam explicar nosso rendimento cognitivo com base em variáveis latentes, os fatores (também denominados construtos). A busca por essas variáveis é efetuada pelo procedimento matemático denominado análise fatorial. O objetivo da análise fatorial é simples: resumir, com base em intercorrelações, variáveis originais (p. ex., os escores obtidos no futebol, no tênis, no basquete e no handball), normalmente numerosas, em um número menor de variáveis ("capacidade desportiva geral"), hipotéticas, que explicariam a co-variância das primeiras. Da mesma forma que a capacidade desportiva poderia, pelo menos em parte, predizer e explicar nosso desempenho em uma diversidade de esportes, a inteligência, representada pelo "fator g", prediz e explica boa parte da variação de rendimento em uma variedade de tarefas cognitivas. A esse respeito, Flynn (2009) comenta que

existe uma forte tendência de o desempenho [nos dez subtestes do WISC-III] estar intercorrelacionado. Isso significa que as pessoas que estão acima da média em um deles tendem a se sair bem em todos, ou seja, aquelas que são boas em enxergar o que certos conceitos têm em comum e em identificar a peça que falta em um padrão tendem a ser as mesmas pessoas que acumulam vocabulários grandes, muitas informações gerais e habilidades aritméticas. É por isso que falamos de um fator de inteligência geral, ou g (p. 16).

Há, além do fator geral, fatores menores que agrupam variáveis que co-variam. A intercorrelação de um grupo de tarefas cognitivas dependerá, em parte, do tipo de raciocínio requerido para resolvê-las. Por exemplo, há uma forte tendência de o escore dos subtestes Informação, Vocabulário, Semelhanças e Compreensão (WISC/WAIS-III) co-variar (nosso desempenho nesses subtsetes costuma ser homogêneo). Esse grupo de tarefas parece exigir um tipo de raciocínio comum. O fator específico que as agrupa, denominado Compreensão Verbal, seria a variável latente/construto que explicaria essa co-variação. Como, por outro lado, nosso desafio é avaliar a estrutura e a potência da inteligência geral, devemos lançar mão de uma bateria de provas que, idealmente, abranja nossas principais habilidades cognitivas. As escalas Wechsler (WISC e WAIS-III), por exemplo, contam com tarefas cognitivas que avaliam, além da compreensão verbal, a velocidade de processamento, a organização perceptiva, a atenção (resistência à distração) e a memória de trabalho. Com esses medidores na manga, faz-se possível avaliar e diferenciar pessoas e grupos em termos de sua inteligência geral.


Considerações finais

A avaliação da inteligência recebeu uma torrente de críticas ao longo da segunda metade do século passado. Como resposta, teorias alternativas, como a das Inteligências Múltiplas, de Gardner, e a da Inteligência Emocional, de Goleman, tentaram atender às exigências e sanar a desconfiança dos críticos. Apesar disso, seus pressupostos ainda carecem de evidências consistentes, às vezes confundem-se com construtos de outras naturezas (p. ex., traços de personalidade) e, em geral, não resolvem a maior parte dos desafios da avaliação intelectual. Consequentemente, nossas medidas tradicionais de inteligência continuam sendo imprescindíveis para abordar problemas em Gerontologia, Sociologia, Pedagogia e, é claro, em Psicologia. O QI e o fator g, em resumo, parecem ser as melhores ferramentas de que dispomos para tentar solucionar o seguinte problema: "Que traços afetam nossa capacidade de resolver problemas de conteúdo cognitivo?"


Referência
  • Flynn, J. R. (2009). O que é inteligência? Porto Alegre: Artmed.

2 comentários:

  1. Um exercício interessante é imaginar o que pode ser uma superintelingência. Geralmente tendemos a pensar em uma memória excepcional ou enorme capacidade de calcular, ou facilidade em aprender línguas ou proficiência em várias áreas acadêmicas, mas estas são habilidades que estão dentro das capacidades humanas.
    Certa vez li que uma entidade superinteligente teria que exibir uma capacidade excepcional de inferir motivações e predisposições em muitos níveis em outros agentes inteligentes, possuindo uma Teoria da Mente (Theory of Mind - ToM)em um nível sobrehumano. Exemplos de entidades assim podem ser encontrados na ficção, como o Dr. Manhattan do Watchmen.
    É claro que nenhuma personagem fictícia dotada de superinteligência é perfeita por causa de uma regra muito interessante: ainda que descrito de outra forma, quando sob uma análise cuidadosa, um personagem só pode ser tão inteligente quanto o autor que o criou. :D

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  2. Cláudio, capacidades como a que você citou tentam eventualmente ganhar espaço no construto a que chamamos inteligência. Ninguém duvida que a Teoria da Mente -- que às vezes se confunde com a empatia -- possa ser mensurável, manifesta-se em graus distintos entre as pessoas e confere vantagens adaptativas importantíssimas. Por outro lado, a Teoria da Mente e/ou a empatia quase não ajuda(m) quando estamos tratando da resolução de "problemas frios", de conteúdo cognitivo, tais como memorizar e manipular números e palavras, inferir padrões lógicos de relação entre figuras abstratas (RAVEN) e encontrar semelhanças entre coisas e ideias. Parece que esse tipo de traço, responsável pela resolução de "problemas quentes" (com conteúdo emocional), está mais relacionado ao construto "personalidade" (embora possa, como parece acontecer, compartilhar estruturas e circuitos neurais com a inteligência).

    Mas isso, além de ser questionável, é também uma questão do que estamos chamando de inteligência. De toda forma, é realmente pertinente concluirmos que a inteligência de nossos personagens imaginários é essencialmente constituída por nossas próprias capacidades (embora, geralmente, bem mais avantajadas). Acho que você já deve ter reparado no quanto Deus, tanto em termos da estrutura de sua inteligência como na manifestação de sua personalidade, é muito semelhante aos seus filhos. Deus pensa, sabe (é onisciente), planeja, julga e é permeado por emoções boas e ruins. Nossa compreensão da realidade e nossa imaginação dependem das e são limitadas pelas ferramentas que possuímos para construí-las.

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