quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Efeito Flynn: a multiplicação social da inteligência

Após ter apresentado as duas medidas de inteligência tradicionais, QI e fator g, é tempo de trazer ao palco um tema intrigante: o efeito Flynn. Esse fenômeno diz respeito aos ganhos exponenciais de QI ao longo das gerações. Na Argentina, por exemplo, constatou-se, no espaço de apenas uma geração (30 anos), um aumento de 18 pontos (pouco mais que um desvio padrão) no desempenho médio das pessoas no teste Matrizes Progressivas de Raven. O escore total de crianças e adultos nas escalas Wechsler (WISC e WAIS-III, respectivamente) também vem inflacionando. O que está acontecendo, afinal? Estamos, com o passar das gerações, ficando mais inteligentes? Quais variáveis explicam esse fenômeno? Tentarei, com base nas ideias de James R. Flynn (2006, 2009), tecer respostas razoáveis para essas perguntas.

Em que vimos melhorando?

Sim: o aumento do QI médio da população é real. Apesar disso, é importante especificarmos em quais tipos de habilidades estamos superando nossos antepassados. Os dados mostram que, ao menos em se tratando das duas últimas gerações, quase não há aumento de rendimento nas tarefas que requerem a reprodução de conhecimento, sobretudo de natureza verbal (p. ex., "Quem foi Chacrinha?" e "O que significa embrulhar?"). Poderíamos dizer, no máximo, que as crianças estão aprendendo a ler e a fazer cálculos mais cedo. Apesar disso, chega um momento, como no final do ensino médio, que esse tipo de desempenho é razoavelmente igualado ao de seus pais e avós.

O aumento de rendimento é maior em tarefas menos familiares, isto é, que requerem menos conhecimento previamente adquirido para resolvê-las. No teste Matrizes Progressivas de Raven, por exemplo, devemos decidir, após identificar a lógica implícita que relaciona um conjunto de figuras abstratas, qual das opções completa a casela em branco. Problemas como os do teste Raven costumam ser inéditos, requerem soluções imediatas e recrutam o que chamamos raciocínio fluido, isto é, um estilo de raciocínio analítico, dedutivo e aplicável a uma diversidade de tarefas (também denominado Inteligência Fluida). Com efeito, pode-se dizer que os ganhos atuais em QI são mais em razão do aprimoramento das habilidades fluidas do que das habilidades cristalizadas (de caráter reprodutivo, comumente representadas pelo construto Inteligência Cristalizada).

Ilustração do que seria uma matriz de figuras abstratas do Raven.

A origem do aprimoramento fluido

Parece ter havido, concomitantemente à Revolução Industrial, também uma revolução de raciocínio. Nossos antepassados costumavam resolver problemas mais concretos, isentos de conceitos e regras abstratas. A sociedade industrializada, que demanda e recompensa de acordo com o nível de instrução, faz com que mais pessoas passem mais tempo na escola. Aos poucos, a abstração foi sendo incorporada e trazida ao cotidiano. Nas palavras e exemplos de Flynn (2006),

vídeo-games, jogos eletrônicos populares e aplicativos de computador geram uma reorientação em direção à solução de problemas em contextos visuais e simbólicos. A Revolução Industrial cria mais empregos enfatizando a manipulação de símbolos e de abstrações. Em suma, uma sociedade mais sofisticada e urbanizante gera inúmeros multiplicadores de habilidades cognitivas que preenchem o dia todo, quer interajamos com colegas de escola, quer isso se dê com colegas de trabalho, cônjuges, pares ou parentes (pp. 398-399).

Não é menos verdade que a Revolução Industrial tenha levantado a média da população também através do aprimoramento de habilidades reprodutivas, cristalizadas. Nossos repertórios lexical e aritmético e as informações de que dispomos sobre o mundo são acumulados conforme o tempo que passamos na escola. Por outro lado, esse ganho parece ter ocorrido em maior proporção durante a primeira metade do século passado. Depois disso, digamos, de duas gerações para cá (60 anos), a principal mudança vem incidindo sobre a maneira pela qual raciocinamos. Apesar disso, Flynn (2009) argumenta que devemos ter cautela ao concluirmos, como alguns sugeriram -- talvez em tom de ironia --, que grande parte de nossos ancestrais era retardada mental:

[...] os enormes ganhos [em QI] de uma geração para outra [não] indicam uma falta geral de inteligência por parte de nossos ancestrais. Suas mentes simplesmente não estavam permeadas pela linguagem científica e não tinham o hábito de raciocinar além do concreto (p. 34).

Em outras palavras, tanto nossos avós como seus pais eram dotados dos mesmos potenciais para aprendizagem, raciocínio e resolução de problemas que temos você e eu. A diferença de ambientes, que depende fundamentalmente do desenrolar histórico, explica a diferença intelectual em questão. Por outro lado, caso estimemos e julguemos a inteligência em se tratando de seus produtos (rendimento cognitivo), as pessoas que iniciaram este milênio são, em média, mais inteligentes do que as pessoas que viveram no início do século passado.

O ambiente é suficiente?

Em suma, as análises de Flynn levaram-no a postular a hipótese dos multiplicadores sociais. Para compreendermos adequadamente o efeito Flynn, precisamos considerar uma espécie de retroalimentação positiva entre as demandas de mercado, a competição e a educação:

A Revolução Industrial é filha da Revolução Científica e mãe da disseminação de visão de mundo científica. Ela mudou cada aspecto da nossa vida [...] e exige e gratifica os anos adicionais de educação. Quando a educação fundamental se tornou uma norma, todos com aspirações de classe média queriam um diploma de ensino médio. Quando seus esforços tornaram o diploma do ensino médio a norma, todos começaram a querer um diploma universitário. Todos respondem ao novo meio melhorando o seu desempenho, o que eleva a média, de modo que respondem à nova média, o que a eleva ainda mais. [Como consequência, há] um aumento enorme nas habilidades cognitivas em uma única geração (p. 43).

Flynn denomina essa retroalimentação positiva de multiplicadores sociais. Por outro lado, não devemos negligenciar o fato de que há diferenças de inteligência consideráveis entre pessoas de uma mesma classe social, que frequentam uma mesma escola e que, aliás, podem até ser irmãos. A hipótese dos multiplicadores sociais parece cumprir seu papel ao explicar o efeito Flynn; já o desenvolvimento individual da inteligência, distinto entre pessoas que crescem em ambientes comuns, pode demandar uma outra explicação. Entre os genes e o ambiente, os multiplicadores individuais podem ser a bola da vez. Aguardem o próximo capítulo.


Referências

  • Flynn, J. R. (2009). O que é inteligência? Porto Alegre: Artmed.
  • Flynn, J. R. (2006). O efeito Flynn: repensando a inteligência e aquilo que a afeta. In: Flores-Mendoza, C., & Colom, R., Introdução à Psicologia das Diferenças Individuais. Porto Alegre: Artmed.

5 comentários:

  1. Muito bom seu texto!

    Não conhecia essa teoria de Flynn.

    Ela se aproxima bastante da teoria analítica-comportamental em alguns aspectos.

    Tem um texto muito bom que mostra como entendemos inteligências: O Behaviorismo Radical como Filosofia da Mente (http://www.scielo.br/pdf/prc/v16n1/16800.pdf)

    Abraço!

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  2. Ótimo, Marcos! Vou arquivar o artigo e ler tão logo puder.

    Obrigado pela visita e sugestão.

    Um abraço.

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  3. Olá Daniel, vi um comentário seu perguntando sobre "Stephen Gould explicar por que não era razoável considerar que os animais são meras "máquinas de replicação de genes"?" no blog da Suzana Herculano. Só achei para te responder aqui: É exatamente o último ensaio do livro de GOULD, S, J.
    Título: "Dawrin, e os grandes enigmas da vida". Vale a pena.
    No livro também tem um ensaio bastante interessante sobre o tal "QI" que vc comenta aqui acredito. Talvez lhe seja útil.
    Outro ensaio curto sobre a discussão dos genes egoístas do Gould eu publiquei no meu blog. Caso queira dar uma olhada: http://greenpixelpr.blogspot.com/2010/01/grupos-protetores-e-genes-egoistas.html
    Um abraço.
    Andre Bruinje

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  4. Obrigado pela referência e pela dica, André. A propósito, excelente texto! Debatemos por lá, se for o caso.

    Um abraço.

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  5. Adorei o texto excelente reflexão!! Obrigada pela contribuição!! Um abraço

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