domingo, 30 de outubro de 2011

Muito além do nosso eu: admirável mundo por vir

Nicolelis, Aurora e seu braço robótico
Desde que li a obra do neurologista português Antônio Damásio, um livro de neurociência não tinha me deixado tão entusiasmado até eu trombar com o Muito Além do Nosso Eu.(1) Em seu livro, o brasileiro Miguel Nicolelis (2011) mostra-nos parte do desafio, assumido por ele e sua equipe, de desenvolver robustas interfaces cérebro-máquina (ICMs): paradigmas que possibilitam a relação da atividade cerebral com artefatos robóticos ou computacionais. Pacientes neurológicos, deficientes físicos, usuários de tecnologia avançada e até mesmo apreciadores de videogames poderão, em breve, se beneficiar desse tipo de tecnologia. Ao que parece, as ICMs prometem uma revolução na forma como interagimos com o mundo e com nós mesmos. Antes de abordar essas intrigantes conclusões, o cientista tupiniquim dedicou boas páginas de seu livro para falar de Aurora, uma macaquinha simpática que os ajudou a descobrir como se pode realizar muitas façanhas pela força do pensamento. E é por aí que eu vou começar.

Suco de laranja: "Dê um pouco, e eu aprendo o inimaginável"

Nicolelis e sua equipe, tendo em mãos um protocolo experimental inovador, tinham como objetivo ensinar Aurora a cumprir uma tarefa computadorizada utilizando apenas o pensamento. Diante de si, a protagonista do experimento via um monitor de cristal líquido no qual um círculo e uma bolinha brancos estavam dispostos. Basicamente, a tarefa consistia em direcionar a bolinha, controlada por um joystick (que cumpria a função de mouse), para dentro do círculo. A cada novo ensaio, o círculo mudava de lugar. Em meio a uma porção de movimentos, o comportamento de levar a bolinha para dentro do círculo  foi sendo seletivamente recompensado (ou melhor, reforçado) com doses de um delicioso suco de laranja brasileiro.

À medida que nossa parente primata vinha se tornando expert naquele jogo, microeletrodos captavam a atividade de 96 neurônios distribuídos em seis áreas corticais. Os sinais desses neurônios (chamados por Nicolelis de "sinfonias neurais"), uma vez filtrados e amplificados por microchips, eram então enviados a um microcomputador que os convertia em sinais digitais. Quase que simultaneamente, uma fita recheada de sensores captava e transmitia ao mesmo microcomputador parâmetros cinéticos do ombro, do cotovelo e do pulso de Aurora. A importância de se registrar tanto os parâmetros de disparo neural como os parâmetros cinéticos, que controlava o joystick, é óbvia: os primeiros controlam os segundos, isto é, os movimentos do braço são causados pela atividade do cérebro. A análise correlacional desses dois parâmetros foi tão extensa e precisa que, com base apenas nos sinais neurais, os pesquisadores passaram a prever qual seria o próximo movimento de Aurora.

A atividade neural pode ser captada, codificada digitalmente e ser usada para controlar o movimento de neuropróteses, como um braço ou pernas robóticas.

Em seguida, Nicolelis e sua equipe decidiram testar se, só pelo pensamento, um braço robótico poderia ser controlado por Aurora. Com o joystick longe de suas mãos, ela não demorou para perceber que, diante da tarefa previamente dominada, bastava simplesmente imaginar os movimentos que fizera outrora, e seus desejos (receber goles de suco de fruta) se concretizariam como que num passe de mágica! Por mediação do microcomputador, o braço robótico (com o joystick) passou a ser fielmente comandado pelo pensamento da macaquinha. Conforme interpretou Nicolelis, Aurora aprendera que querer é poder.



Admirável mundo por vir


No último capítulo de seu livro, denominado De volta para as estrelas, Nicolelis especula livremente sobre possíveis aplicações das ICMs num futuro mais ou menos distante. Em razão da capacidade do cérebro de assimilar ferramentas -- como quando Pelé, Ayrton Senna, Santos Dumont e Aurora tomaram como partes de si, respectivamente, bolas de futebol, carros de Fórmula 1, aviões e braços metálicos --, o autor acredita que as ICMs poderão tanto "restaurar a vida daqueles que são afligidos por quaisquer danos neurológicos" como "permitir a expansão de nossa percepção e ação no universo" (p. 470). No que se refere à área médica, pacientes acometidos por moléstias neurológicas poderão voltar a ouvir, falar, ver, tocar e andar. Por exemplo, um dos projetos que Nicolelis ajudou a fundar, o The Walk Again Project (Projeto Andar Novamente), visa "desenvolver e implementar a primeira ICM capaz de restaurar a mobilidade corporal completa de pacientes vítimas de graus severos de paralisia" (p. 471). Esses pacientes poderão controlar, pelo pensamento, movimentos complexos de exoesqueletos (vestes robóticas) de corpo inteiro, de tal forma que possam ser modulados seus membros superiores e inferiores, sua postura e a deambulação corporal. O pesquisador, em um tom ousado e animador, prevê que,

depois de algumas semanas de interação com o exoesqueleto, o cérebro de nosso futuro paciente completará o processo de incorporação dessa veste robótica através de um processo de plasticidade neural, como uma extensão verdadeira da imagem corporal que reside nele. Nesse momento, o usuário provavelmente se tornará proficiente na operação do exoesqueleto controlado pela ICM, podendo então voltar a se mover livre e autonomamente pelo mundo (p. 475).

Para além da medicina, Nicolelis vislumbra um mundo no qual nossos descendentes controlarão, pelas faíscas ordenadas de seus encéfalos, toda uma rede de aparatos tecnológicos, desde a manipulação de objetos virtuais e lúdicos à literal troca de ideias em uma rede social cerebral, a brainet. E, num ponto mais próximo de outras estrelas, robôs humanoides ou mesmo avatares virtuais poderão explorar paisagens extraterrestres longínquas, trazendo "para a ponta de nossos dedos a sensação inaudita do que seria tocar essas terras estranhas e seus segredos" (pp. 488-89).

Perto do fim, Nicolelis aproxima suas especulações à fantasia -- e quase à religiosidade. Se em um momento ele afirma que uma teia organizada de cérebros em comunicação poderia configurar uma fusão coletiva de mentes, ele posteriormente levanta a possibilidade de se registrar perenemente a experiência subjetiva de cada indivíduo humano! O autor não revela detalhes de como essas façanhas poderiam ser arquitetadas. Pelo contrário, prossegue com sentenças cada vez mais estranhas, e quiçá irônicas, como a de que poderíamos coroar "o cérebro relativista de primata como a única trindade significativa a nos conceder suas bênçãos" (p. 495). Mas a mensagem básica é clara: o cientista brasileiro crê que o desenvolvimento e a assimilação social de ICMs ditarão uma mudança notável na forma como concebemos o senso de eu e, de forma geral, o que entendemos por realidade.

Na dúvida saudável de se todo esse devaneio irá se concretizar, resta-nos, sobretudo para quem não teme o avanço tecnológico, pegar carona em extasiantes enredos como Matrix e Avatar -- obras cinematográficas que abrem caminho à experimentação de um admirável e possível, embora às vezes dramático, mundo por vir.





Nota


(1) Para uma resenha crítica do livro, ver Muito além do muito além do nosso eu, escrita por Eli Vieira (2011).

Referência

  • Nicolelis, M. (2011). Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas -- e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras.

5 comentários:

  1. É realmente desafiador o trabalho científico que está sendo realizado,e o mais importante, é que isto acontece com um brasilleiro na realização.Nessa hora devemos dizer que temos orgulho deser brasileiro.
    Mas mudando de um polo ao outro, gstaria muito de saber se ele,uma cabeça tão diferente da maioria das pessoas, acredita em Deus.

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  2. Olá, anônimo,

    Eu não me lembro de ele se referir a esse assunto no livro. Imagino que, como acontece com neurocientistas populares como Antônio Damásio, ele queira evitar se posicionar (para não desagradar céticos ou religiosos). Mas e você, em que sentido acha essa questão relevante para os trabalhos do Nicolelis?

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    1. oi Daniel,
      Realmente ele não faz qualquer referência a isso no livro. Contudo, nesta entrevista que Nicolelis concedeu à revista Planeta - http://migre.me/844sG - ele afirma ser ateu.
      Sou admiradora do trabalho dele e da sua postura em relação ao acesso à pesquisa científica. E me impressiono toda vez que assisto aos videos de Auroa e Idoya em ação. É quase surreal.

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  3. Bacana, Cristine. Embora ele não faça uma referência direta sobre isso no livro, ele me pareceu tratar disso de maneira indireta ao dizer que poderíamos coroar "o cérebro relativista de primata como a única trindade significativa a nos conceder suas bênçãos" (p. 495). Pode ser forçosa a minha interpretação, mas o contexto de suas teses parece justificá-la.

    Obrigado pela participação. Um abraço!

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