sábado, 7 de abril de 2012

Reflexões sobre a páscoa e o ateísmo

Para início de conversa, eu sou ateu. E o que significa isso? Tal como sugere a etimologia da palavra (a, de ausência ou negação, e theos, de deuses), pode-se dizer que eu nego a existência de deuses. Um teísta, pelo contrário, poderia ser definido como alguém que aceita a existência de Deus -- ou, no caso de um politeísta, de deuses. Mas, no meu ponto de vista, não poderíamos parar por aí. Em que, afinal, consiste aceitar ou negar a existência de deuses? Que crenças e condutas básicas caracterizam ateus e religiosos? Após esboçar uma breve resposta a essas questões, tentarei ilustrar como um ateu pode se comportar na celebração da páscoa, época em que os cristãos comemoram a ressurreição de Jesus Cristo. 

A ressurreição (Raffaelino del Garbo, 1510)
O ser ateu

Para muitas pessoas, a proposição "Eu nego a existência de deuses" pode suscitar espanto. "Como assim... você não acredita em nada?" Na verdade, parece melhor redefinir aquela proposição para "Eu creio que deuses não existem", mesmo que isso ainda não resolva o problema em questão. Afinal, em que crê e o que faz quem não acredita em deuses? Temos uma noção básica do que creem e fazem judeus, budistas e cristãos, mas o mesmo pode não ser dito a respeito dos ateus. Pode ser tentador definir o ateísmo como a ausência de comportamentos ligados à religiosidade. Mas, se não fazer algo já é fazer alguma coisa, é a esse "fazer diferente" que precisamos nos atentar. O ateu não fica simplesmente inerte, parado em feriados religiosos, e não fica sem reação quando coisas inusitadas ou adversas acontecem. Como disse o biólogo Paul Z. Myers (2011), o ateísmo não é "um ideal platônico flutuando em um espaço virtual com nenhuma conexão com mais nada". Crenças não fazem sentido sem que sejam associadas a comportamentos públicos, e parece razoável dizer que o ateísmo é uma crença.

Uma charge que transmite uma crítica baseada em ignorância. A vida ateísta não é vazia, "em branco" ou indiferenciada.
Nossos comportamentos são contextualizados, e há contextos específicos em que o comportamento religioso aparece. Não: as pessoas não são ininterruptamente religiosas! O comportamento religioso aparece e desvanece conforme variam as situações. Por exemplo, somos religiosos quando, ao sermos exitosos ou ao fracassarmos, agradecemos às divindades ou nos colocamos a orar; quando beijamos estátuas que representam santos; quando procuramos nos unir, através da meditação, ao Cosmos; quando baseamos nossas ações nas prescrições de um livro considerado sagrado; e quando concebemos o mundo como um desígnio divino. Contudo, os religiosos também se envolvem em práticas seculares, isto é, em práticas em que não há o matiz religioso. Exemplos dessas atividades são estudar matemática, comer pastéis e beber Coca-Cola, fazer transações bancárias, pegar um ônibus e acompanhar jogos de futebol. Embora certas práticas sejam ocasionalmente permeadas pela fé (como quando oramos para que nosso time vença), isso não é o bastante para denominá-las religiosas.

Parece difícil a tarefa de delimitar o perfil comportamental básico de um ateu, mas acho que podemos, senão devemos, nos arriscar. Antes de fazê-lo, descreverei alguns atributos que não definem, mas que parecem acompanhar o ateísmo.

Os ateus, ao menos os que eu conheço, são pessoas razoavelmente desconfiadas. Eles estão frequentemente atentos a incoerências ou a afirmações pouco fundamentadas, carentes de evidências, e não tomam certas afirmações como verdadeiras simplesmente por terem sido proferidas por autoridades (por exemplo, por pais, professores e líderes religiosos). Essa sensibilidade costuma levar ao questionamento e a uma postura crítica. Em essência, eu diria que o ateu se comporta com base na ideia de que o outro pode estar enganado ou pode querer enganar. Mas, e como no caso dos religiosos, esse perfil não está presente em qualquer situação. Há quem possa deixar de lado o "filtro do ceticismo" ao se deparar com notícias ou artigos científicos, sobretudo quando se tratam de algo que se queira ouvir. Os ateus são, antes de tudo, humanos.

Esse tópico é um tanto polêmico, mas eu intuo (tudo bem, com base em alguns estudos científicos) que o ateísmo é regado por um bocado de inteligência. A origem do Universo e das espécies, o sentido da vida e as questões morais são alguns dos temas importantes a ser abordados secularmente pelos ateus. Não é tarefa fácil compreender satisfatoriamente o big-bang e a seleção natural, e o convívio com religiosos pode exigir dos ateus um repertório básico de lógica, psicologia e história. A sustentação adequada do ateísmo parece requerer um esforço intelectual incomum, mesmo que isso não se traduza necessariamente em uma "inteligência incomum". Uma parcela considerável dos ateus que eu conheço valoriza o conhecimento, para não dizer a racionalidade, e se esforça para conhecer cada vez mais.

Em seu texto "Por que você é ateu?", Myers (2011), em harmonia com o que venho propondo, ressalta que

há mais no ateísmo do que a simples negação de uma afirmação: ele é na verdade baseado em uma atitude científica que valoriza a evidência e a razão, que rejeita afirmações baseadas somente em autoridade e que encoraja uma exploração mais profunda do mundo. Meu ateísmo não é somente uma negativa de deuses, mas é baseada em todo um conjunto de valores positivos que eu enfatizo quando falo sobre ateísmo. Aquele lance de negar a existência de Deus? É uma consequência, e não uma causa.

Desconfiança e esforço intelectual talvez sejam perfis comportamentais comumente encontrados entre os ateus.(1) Se, pelas circunstâncias da vida, aprendemos a desconfiar (ou a ser céticos), a nos perguntar e a investigar, há uma grande chance de nos depararmos com o ateísmo. Com efeito, o ser ateu pode ser um subproduto emergente daquelas posturas, mas que só vem a irromper em contextos em que há um apelo social por intervenções e explicações sobrenaturais sobre o mundo. Se não houvesse o comportamento religioso, talvez não faria sentido falar de comportamento ateísta. Não há religiosidade entre os demais animais, e não é por isso que os chamamos de ateus. Por isso, o ateísmo é um conjunto de posturas que se distingue pela busca de interpretações e explicações naturais para eventos que, entre os religiosos, são frequentemente interpretados e explicados pelo poder e desígnio divinos, que são sobrenaturais. O ateu pode não negar que há mistérios e eventos difíceis de ser explicados no mundo, mas não faz disso um motivo para inventar deuses. Sob um prisma moral, eu diria que saber conviver com a dúvida é uma virtude.

Ser ateu, enfim, é resistir ao ímpeto de criar ou invocar entidades superpoderosas, os deuses, para explicar ou alterar os fenômenos do mundo; em vez disso, é dar prioridade à formulação de hipóteses naturalistas, bem como a se comportar como se as coisas não fossem permeadas por forças mágicas ou divinamente caprichosas. O ateísmo não é simplesmente a ausência de crenças em divindades, mas um conjunto de crenças e posturas que fazem a diferença.

A páscoa e o ateu

Qual é o significado da páscoa?
Antes de ontem, acompanhei parte de um documentário que tratava da morte e ressurreição de Jesus Cristo, a personificação do deus cristão. Pelo que eu vi por lá,(2) a missão de Jesus não era apenas a de levar esperança e prescrições comportamentais para as pessoas, mas a de livrá-las do pecado original. Através de sua morte, Cristo teria trazido a redenção (que só poderia ser adquirida pelo sacrifício de um ser humano perfeito), e as pessoas que nele cressem teriam o privilégio que, no início dos tempos, teria sido perdido no Jardim do Éden: a vida eterna. Quando Jesus ressuscita, três dias após sua crucificação, as pessoas não teriam por que duvidar da legitimidade de sua missão e natureza, e a páscoa seria, então, a data mais importante do calendário cristão. Jesus resgatou para a humanidade a possibilidade de superar a própria morte!

A história de Cristo é tanto bonita quanto dramática, e traz o apelo a respeito de uma entidade poderosa e sobrenatural, Deus, que nos ouve, nos julga e pode intervir sobre o mundo. Geralmente, os cristãos a encaram como um relato verídico e de forma literal, já que está bem documentada e possui mais de um autor (Mateus, Marcos, Lucas e João). Diante disso, como é que ficam os ateus?

Anteriormente, sugeri que os ateus, ou a maior parte dos que eu conheço, são desconfiados e intelectualmente esforçados. Se tivessem nascido em comunidades que cultuam outras religiões, poderiam não ligar para os relatos bíblicos. Mas este não é o caso. No contexto pascal, o ateu pode ser confrontado, indagado e admoestado por seus amigos e familiares cristãos. Imaginando que houvesse um clima propício para um boa conversa sobre o tema, eis o que um ateu poderia fazer.

Indagar. Desconfiado, algumas perguntas poderiam ser levantadas. Por exemplo: Quem escreveu o novo testamento? Isso ocorreu ao longo, logo após ou muito depois da morte de Jesus? Houve modificações nas escrituras desde a primeira edição? Há evangelhos que não foram incluídos na bíblia? O cristianismo poderia servir para fins políticos? Há elementos na história de Cristo que se assemelham a mitos ancestrais? O que faz do cristianismo uma doutrina melhor que as demais doutrinas religiosas?

Explicar e sugerir. Se já tiver se dedicado a procurar algumas respostas àquelas perguntas, o ateu pode tentar explicar por que não parece ser útil ou inteligente crer no cristianismo. Por exemplo, pode-se lembrar do quão suscetível a mudanças são as mensagens transmitidas oralmente, e que as pessoas que decidiram colocar a história de Jesus no papel não foram seus contemporâneos. O argumento, fundamentado em evidências, de que as escrituras foram alteradas ao longo do tempo é primordial, e o palpite de que algumas dessas mudanças e a seleção de uns ou outros evangelhos tiveram um viés político pode ser um bom complemento. Por fim, poder-se-ia sublinhar que vários elementos da história de Jesus parecem ter sido inspirados em mitos adjacentes ou ancestrais, incluindo, por exemplo, aspectos do seu nascimento, de seus milagres e de sua morte e ressurreição. Desse modo, o ateu poderia sugerir que a história de Jesus Cristo provavelmente não condiz com eventos que realmente aconteceram -- ou que pode, no mínimo, ter sido muito alterada --, mas que diz, em vez disso, de uma das mais organizadas e pomposas tentativas humanas de significar e lidar com as dificuldades e mistérios da vida.(3)

Participar. A título de curiosidade, admiração ou convenção, há ateus que se permitem participar de algumas atividades cristãs. Compreender certas práticas e ideias religiosas pode ser importante contra o surgimento de preconceito e intolerância, e pode ajudar o ateu a não se precipitar em julgamentos e a formular, em contextos de discussão, objeções melhor fundamentadas. Além do mais, há quem admire a arte, a arquitetura e os rituais cristãos, bem como que extraia bons frutos, sem hipocrisia, de celebrações como a páscoa e o natal. O ateu não precisa ficar de cara amarrada para tudo quanto é coisa religiosa; dar e receber ovos de páscoa e se reunir com os familiares pode ser algo agradável e útil para fortalecer laços sociais. Não é necessário crer no coelho da páscoa, orar e levar a sério a ressurreição de Jesus para que se possa curtir um feriado religioso.

Considerações finais

Definir o que se quer dizer com "ateísmo" pode ser uma tarefa mais difícil do que parece à primeira vista. Se nos restringimos à etimologia, podemos ficar confusos quanto ao que significa aceitar ou negar a existência de deuses. Por isso, torna-se fundamental fazer menção a práticas e ideias que acompanham ou constituem certas crenças. Tal como há variações marcantes em como as pessoas aceitam a existência de deuses, decerto há variações no ser ateu. Sugeri alguns padrões de conduta que são frequentes entre os ateus que eu conheço, e tentei, com algum custo, definir em poucas palavras o que eu entendo por "ateísmo". Não quero pensar que minhas sugestões e definição são definitivas; espero que colegas possam me ajudar a ajustá-las ao longo do tempo.

Ao final, arrisquei-me a falar sobre a páscoa e sobre como um ateu poderia lidar diante dessa ocasião. Devo ressaltar que aquele trecho não se tratou de prescrições, mas de sugestões ou possibilidades de ação que vislumbrei a partir de experiências próprias, de relatos de alguns colegas e de leituras que fiz. Ateus não precisam se posicionar a favor do aborto, do casamento homossexual e da abolição de crucifixos em repartições públicas, e não precisam necessariamente ser delicados e respeitosos para com os religiosos. Contudo, creio que a força de um grupo pode crescer na medida em que certas posturas básicas são incorporadas. Não estou certo sobre que posturas seriam essas, mas desconfio que o ceticismo e o humanismo são bons candidatos.

Você é ateu — orgulhe-se daquilo em que você acredita, e não daquilo em que você descrê. E, também, aprenda a respeitar o fato de que as pessoas com ideias contrárias às suas não chegaram a suas conclusões em um vácuo. Na verdade, há motivos mais profundos para elas endossarem tão veementemente entidades sobrenaturais, e tais razões nem sempre podem ser reduzidas à estupidez (Myers, 2011).


Notas

(1) Minha conclusão baseia-se em observações assistemáticas e restritas ao meu contexto social (real e virtual). Pode haver o "viés do desejo" por detrás das minhas análises, e pode ser que minhas hipóteses não condigam com a realidade global. No entanto, acho que vale a pena compartilhá-las e discuti-las.

(2) A síntese do significado da vida de Jesus Cristo foi revista pelo meu colega Geraldo Majela.

(3) Abaixo, listo leituras que me ajudaram a chegar naquelas conclusões e sugestões:
  • Botton, A. (2011). Religião para Ateus. Rio de Janeiro: Intrínseca.
  • Ehrman, B. D. (2006). O que Jesus Disse? O que Jesus não Disse? Quem Mudou a Bíblia e por quê. Rio de Janeiro: Prestígio.
  • Kuhn, A. B. (2006). Um Renascimento para o Cristianismo: Jesus: Homem ou Mito? Rio de Janeiro: Nova Era.

Referência
  • Myers, P. Z. (2011). Why are You an Atheist? Pharyngula. Disponível em: http://scienceblogs.com/pharyngula/2011/02/why_are_you_an_atheist.php e em http://bulevoador.com.br/2011/11/29896/.

8 comentários:

  1. - A páscoa exisita antes mesmo de Jesus, tanto que foi crucificado na páscoa!
    - Nunca escreve na terceira pessoa do plural: "nós quem, cara pálida".
    - Evite ler os livros, artigos, etc. com o coração, leia mais com a mente mesmo.

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  2. Muito bom o texto, Daniel!

    Aliás, ele me fez repensar um pouco a idéia de que o ateísmo não é uma crença. Claro que, sob certo ângulo não é possível afirmar o contrário, já que não existem evidências de que Deus existe nem deixa de existir, assim, qualquer postura que afirme categoricamente algo sobre esses dois extremos está manifestando uma crença. Mas esse texto me mostrou um novo ângulo. Vou ler os textos que vc linkou aí pra ver se chego a uma nova opinião.

    Abraço!

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    1. Legal, Felipe! Dê uma olhada nos textos e me conte depois, cara. Eu ainda estou a trabalhar em cima dessa ideia, que também é uma novidade para mim.

      Valeu, meu caro! Abraço!

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    2. Dei uma lida nos textos. Achei todos muito bons. E ainda li outros cujas referências estavam neles. Olhando pelo angulo deles, realmente o ateísmo é uma forma de crença. Aliás, eu já tinha isso em mente. O ateísmo é uma posição filosófica tão válida quanto o teísmo, exceto pelo fato de que grande parte dos ateus tem seu olhar em direção ao mundo regido pelo valor dado às evidências e ao pensamento crítico. A maioria dos religiosos (pelo menos os monoteístas) agem de forma contrária a esses princípios. A posição mais neutra e mais compatível com uma visão científica de fato é o agnosticismo. Afinal, não é possível provar que existe nem que não existe nada relacionado à parte metafísica da religião.

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    3. Eu não diria que o agnosticismo é mais próximo de uma posição científica. Pelo que entendo, o método científico é inerentemente cético (o que não implica que devemos descartar hipóteses antes de testá-las [se bem que, pensando assim, parece que você tem razão!]). Não temos razões nem evidências para crer que há um unicórnio invisível na lua. Diante do que já sabemos sobre os organismos vivos (como se originam, como evoluem, do que precisam para sobreviver), bem como sobre como nascem as superstições e mitos humanos, a hipótese mais plausível é a nula, isto é, a de que "Não há unicórnios na lua". Tudo bem que seria complicado, para não dizer impossível, tentar falsear essa hipótese. Mas, mesmo que muitas proposições teológicas assumam essa não suscetibilidade ao falseamento, não precisamos necessariamente nos ser agnósticos a respeito delas. Há boas RAZÕES para crermos que são falsas. Como sugeri no texto, a compreensão de um pouco de história, psicologia e lógica/filosofia pode ser o bastante para nos tornarmos céticos quanto a certas proposições. Hume, por exemplo, em seu livro "História Natural das Religiões", propõe que o monoteísmo é um sistema melhor do que o politeísmo, e apresenta seus argumentos relacionados à ordem, às finalidades e à uniformidade das coisas do mundo. Pode-se, ainda, e parece que ele fez isso em seu livro póstumo, ter razões para descrer até mesmo na existência de um deus superpoderoso, único, perfeito e infinito. Enfim, e não só pela filosofia, as ciências históricas e comportamentais podem nos oferecer recursos que nos permitem adquirir um posicionamento menos receptivo à hipótese de Deus. Mesmo que não possamos falseá-la (não é uma proposição científica), podemos ter boas razões para duvidar dela. Isso é mais ou menos o que eu penso...

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  3. Você deu exemplos do que considera o “comportamento religioso”, mas não definiu o que é este comportamento. Mais à frente, você tentou esboçar uma comparação entre o comportamento teísta e o ateu focando na maneira como o ateu e o crente tecem explicações sobre o mundo, e pela presença ou ausência de um caráter crítico.

    A palavra ‘religião’ vem do latim ‘religare’, que significa ‘religar’, ‘restabelecer o vínculo’. Basicamente, quando o homem vivia no mundo animado da mitologia, o mundo era antropomorfizado, e o homem vivia em meio a elementos e entes naturais com os quais podia se identificar. Com o progresso da racionalidade, as antropomorfizações foram sendo desconstruídas, e o homem passou a viver num mundo de elementos inanimados; um mundo com o qual ele perdeu o vínculo identificatório. Os símbolos religiosos tem justamente a função de religar o homem com o mundo. As religiões monoteístas de hoje não mais pregam a antropomorfização dos elementos naturais. Elas também sofreram com o avanço da racionalidade. A única coisa que resistiu a este processo foi o conceito ABSTRATO de vida. É ao conceito abstrato de vida que as religiões monoteístas de hoje denominam ‘Deus’. ‘Deus’ antropomorfiza a vida e, consequentemente, acaba antropomorfizando todo mundo regido por ela. Através de ‘Deus, portanto, o homem restabelece o vínculo identificatório com o mundo.

    E por que o homem precisa deste vínculo? O mundo representa a fonte de toda a realização que o homem conseguiu, consegue e pode conseguir. O que aflige o homem é justamente o medo quanto ao futuro; medo de não conquistar aquilo que espera. Mas, o homem não pode esperar nada de um mundo inanimado e regido por leis impessoais. Para que o mundo possa lhe dar aquilo que espera, o homem precisa acreditar que o mundo é capaz de se compadecer dele, e que as leis que regem o mundo são baseadas em conceitos como ‘justiça’, ‘merecimento’, etc. Somente um mundo atropomorfizado seria capaz de algo assim.

    Disso, conclui-se o seguinte:

    A distinção entre teísmo e ateísmo não está na aceitação ou na negação de Deus ou deuses. O teísta é qualquer um que alimente qualquer esperança dirigida ao mundo; é aquele que espera que o mundo lhe dê o que ele precisa. ‘Deus’ é apenas uma das IMAGENS possíveis desta FUNÇÃO. Mas, esta função pode ser ocupada por muitas outras imagens ou conceitos. É sabido que os comunistas substituíram a esperança em Deus pela esperança nas promessas de Marx. E é sabido também que os cientistas procuram alimentar suas esperanças num mundo melhor, num mundo que possa lhes oferecer aquilo que eles esperam, nas promessas das descobertas científicas. A racionalidade, a dúvida, o ceticismo e a desconfiança não livram ninguém do teísmo. Pelo contrário, essas coisas podem justamente levar a uma grande ilusão, uma vez que pode levar o indivíduo a acreditar que ele eliminou a FUNÇÃO ‘Deus’ de seu comportamento simplesmente porque ele eliminou a IMAGEM ‘Deus’ de suas explicações do mundo.

    Concluindo, o comportamento ateu não se define pela maneira de explicar o mundo. Ele se define por uma determinada ATITUDE frente ao mundo. ‘Deus’ é apenas outro nome para ESPERANÇA. Aquele que vive de esperança, não importa se é esperança na ciência, no comunismo, na humanidade, vive “em Deus”.

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    1. É verdade: eu acabei evitando de definir o que há de essencial naqueles exemplos de comportamento religioso. No entanto, mais abaixo eu descrevi um pouco do que queria dizer: "Por isso, o ateísmo é um conjunto de posturas que se distingue pela busca de interpretações e explicações naturais para eventos que, entre os religiosos, são frequentemente interpretados e explicados pelo poder e desígnio divinos, que são sobrenaturais". Para justificar o uso dos termos (ateísmo e teísmo), acho que precisamos fazer menção a essas entidades superpoderosas. Por isso, não vejo por que considerar que "ter esperança" equivale a "viver em Deus". Compreendo que "crer em Deus" é um comportamento que possui certas funções, bem como que algumas delas podem ser transportadas ou generalizadas para figuras importantes ou certas instituições seculares. Entretanto, não me parece razoável dizer que, porque temos fé em Marx ou nos benefícios que a ciência traz e ainda pode trazer, somos por isso religiosos. Pode haver certos elementos comuns na forma como lidamos com essas "entidades" (como a esperança), mas penso que "religiosidade" diz de uma especificidade nessas relações.

      Vou refletir sobre a questão da personificação.

      Abraço!

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    2. Se bem entendi sua colocação, Daniel - essa hora o sono bate e minha compreensão fica meio prejudicada rs - vc tocou num ponto que venho pensando há muito tempo, e que foi fortificado como questão a ser investigada pelos estudos que venho empreendendo sobre mitologia oriental, mais especificamente, budismo.

      A noção de Deus se repete por todo o mundo em conceitos fundamentais (o que não impede que sejam diferentes também em outros aspectos), mesmo que essa noção não seja antropomórfica, como é nas tradições monoteístas. Vejo, por exemplo, no Vazio do Budismo muito daquilo que é chamado de Deus em outras tradições. Mas, enfim, isso serve de base também para entendermos que a noção de Deus é algo obtido e condicionado através da nossa percepção humana daquilo que nos cerca. É como se nossa cognição acabasse nos levando para esse tipo de concepção. E, como vc disse, mesmo que não coloquemos uma divindade no pedestal e tal, acaba surgindo outra coisa pra ficar no lugar dela, seja um ideal laico ou outro ideal religioso.

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