sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Redes cerebrais de grande escala

Como requerimento para obtenção dos créditos da disciplina Developmental Cognitive Neuropsychology,(1) Bruno E. Faleiros e eu confeccionamos uma resenha crítica de um artigo de revisão sobre redes cerebrais de grande escala. O texto a seguir é uma versão levemente modificada da resenha original, e é constituído de um resumo das ideias principais abordadas pelos autores e de algumas críticas e sugestões nossas.

Resenha Crítica

Bressler, S. L., & Menon, V. (2010). Large-scale brain networks in cognition: emerging methods and principles. Trends in Cognitive Sciences, 14(6), 277-90.

Daniel F. Gontijo
Bruno E. Faleiros

Em seu artigo de revisão intitulado Large-scale Brain Networks in Cognition: Emerging Methods and Principles, Steven L. Bressler e Vinod Menon sugerem que as funções cognitivas podem ser adequadamente estudadas pelas redes cerebrais de grande escala (RCGEs).

Basicamente, uma RCGE pode ser definida como um conjunto de áreas que interagem dinamicamente para realizar funções específicas. A abordagem das RCGEs questiona a hipótese de que áreas isoladas e especializadas poderiam, sozinhas, sustentar certas funções cognitivas – premissa básica do paradigma modular. A percepção de faces, por exemplo, em vez de ser uma função cognitiva relacionada unicamente ao giro fusiforme, parece depender também do recrutamento de áreas visuais, límbicas e frontais. 

O reconhecimento de faces, embora seja um processo relativamente simples, está relacionado a uma rede que abarca diversas regiões cerebrais. A ruptura em algum ponto da rede pode levar a prejuízos funcionais, como é o caso da prosopagnosia (incapacidade de reconhecer faces). (Imagem retirada de Ellis e Lewis, 2001.)

As RCGEs são constituídas de nós, cada qual sendo caracterizado por um conjunto de corpos neurais (matéria cinzenta) adjacentes e funcionalmente relacionados, e arestas, que se referem a "caminhos" de fibras axonais (matéria branca) que interconectam os arranjos nodais. (A figura abaixo representa uma rede estruturada por nós e arestas.)

Atualmente, o processo de mapeamento das RCGEs baseia-se em análises neuroanatômicas, como a ressonância nuclear magnética (RNM) estrutural e a RNM por difusão, e funcionais, como os registros eletrofisiológicos, a ressonância magnética funcional (fMRI) e a tomografia por emissão de pósitrons (PET). A título de exemplo, a fMRI, que registra o fluxo sanguíneo cerebral (quanto mais uma área é irrigada, maior é sua atividade), pode identificar nós enquanto indivíduos são submetidos a uma bateria de tarefas cognitivas. Nas palavras dos autores, “um grupo de áreas cerebrais conjunta e unicamente ativadas ou desativadas durante uma função cognitiva pode, com respeito à linha de base, representar os nós de uma rede de grande escala para aquela função”.(2)

Um estudo seminal localizou, com base na relação do fMRI com algumas funções cognitivas, cinco redes principais em funcionamento: a de atenção espacial, a de linguagem, a de memória explícita, a de reconhecimento de faces e objetos e a de funções executivas (Mesulam, 1990). Várias redes identificadas durante a exposição de um indivíduo a tarefas cognitivas podem ser também verificadas durante seu estado de repouso. Essa coincidência sugere que as redes neurais são intrinsecamente conectadas, e não um arranjo funcional transitoriamente determinado pelas circunstâncias ambientais. Redes intrínsecas relacionadas ao controle executivo, à memória episódica, à memória autobiográfica e à detecção de eventos salientes têm sido localizadas.

A despeito dos avanços da perspectiva das RCGEs, Bressler e Menon ressaltam que ainda há muito que ser pesquisado e discutido. Por exemplo, novos métodos para investigar as interações dinâmicas intra- e inter-redes (cooperações, competições, hierarquias etc.) são necessários, bem como para descobrir quais mecanismos são responsáveis pela associação e dissociação dos nós que compõem uma rede. Acerca dessas e de outras modificações – como a expansão de fronteiras e o fortalecimento de nós e arestas –, os autores comentam que os papéis da aprendizagem e da maturação cerebral devem ser criticamente estudados. Espera-se que, com o avanço dos métodos de análise e de interpretação de dados, o conhecimento acerca das RCGEs possa ser de grande utilidade para a compreensão de desordens neurológicas e psiquiátricas.

A revisão de Bressler e Menon apresenta uma tendência da neurociência cognitiva atual. O cérebro já não é visto como sendo dividido em áreas altamente independentes e seletivas, mas como um órgão constituído de populações neurais que, embora possam ser relativamente especializadas, exercem suas funções através de um trabalho interdependente e dinâmico. Mas o paradigma que está se aposentando não é exatamente o modular, e sim o frenológico. Em um trabalho recente, Meunier, Lambiotte e Bullmore (2010) asseveraram que os módulos são constituídos de nós densamente interconectados, que esses nós estão conectados a nós de outros módulos, que um conjunto de módulos configura uma rede complexa e que essa rede “suporta a emergência de comportamentos e cognições adaptativos”. Sobretudo quando consideramos que as RCGEs podem ser hierarquizadas em redes principais e sub-redes, as duas abordagens são bem mais similares do que os autores quiseram inicialmente sugerir. Bressler e Menon parecem ter cometido a “falácia do espantalho”, que consiste em favorecer uma ideia de interesse (paradigma das redes) através da distorção, proposital ou acidental, de uma ideia virtualmente concorrente (paradigma modular).

No mais, a revisão de Bressler e Menon contém alguns argumentos teleológicos inadequados, em que a existência de órgãos e mecanismos é concebida como uma finalidade, ou como uma causa final (em vez de o ser como um produto cegamente engendrado pela seleção natural), e algumas das comuníssimas “falácias mereológicas da neurociência”, em que predicados psicológicos (por exemplo, conhecer, perceber e analisar), que só fazem sentido quando aplicados a um indivíduo como um todo, são aplicados ao cérebro (Bennett & Hacker, 2003). Entretanto, o tratamento desses deslizes como metáforas ou analogias não compromete a apreciação dos interessantes e atualíssimos dados e propostas arranjados no trabalho dos autores.


Notas

(1) A disciplina Developmental Cognitive Neuropsychology  foi, neste semestre, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Neurociências e Comportamento da Universidade Federal de Minas Gerais, sendo atualmente ministrada pelo professor Vitor Geraldi Haase.

(2) Determinar quais áreas e arestas compõem uma rede não é uma tarefa simples, podendo variar de acordo com as técnicas empregadas e com os critérios escolhidos pelo pesquisador. Uma espessura mínima das fibras axonais e a flutuação da atividade de grupos neuronais pelo tempo são exemplos de critérios que podem ser adotados.

Referências

  • Bennett, M. R., & Hacker, P. M. S. (2003). Fundamentos Filosóficos da Neurociência. Lisboa: Instituto Piaget.
  • Bressler, S. L., & Menon, V. (2010). Large-scale brain networks in cognition: emerging methods and principles. Trends in Cognitive Sciences, 14(6), 277-90. 
  • Ellis, H. D., & Lewis, M. B. (2001). Capgras delusion: a window in face recognition. Trends in Cognitive Sciences, 5, 149-156.
  • Mesulam, M.M. (1990) Large-scale neurocognitive networks and distributed processing for attention, language, and memory. Ann. Neurol., 28, 597–613
  • Meunier, D., Lambiotte, R., Bullmore, E. T. (2010) Modular and hierarchically modular organization of brain networks. Front Neurosci., 8, 4: 200.

4 comentários:

  1. Muito bom o texto, Daniel. Parabéns!

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  2. Adorei o blog! Continuarei acompanhando. Um grande abraço!

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  3. Otimo, mesmo sendo leiga nestes assuntos adoro , tenho que ler com muita atenção, mas vale a pena.

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  4. Obrigado, Felipe e "Borderline"! Marisa, tento ao máximo deixar as informações razoavelmente mastigadas, acessíveis ao grande público, mas isso nem sempre é tarefa fácil... Espero que continue acompanhando!

    Abraços!

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