domingo, 8 de junho de 2014

A mente e o inconsciente: lugares, ficções ou eventos comportamentais?

Todos nós, psicólogos ou não, podemos nos embaraçar ao tentar explicar o que é a mente. "Mente" é de fato um termo bastante escorregadio, e nem mesmo os filósofos conseguiram entrar em consenso sobre sua definição. No cotidiano, tendemos a pensar que a mente é um lugar especial – e quiçá  imaterial – no qual ocorrem nossas ideias, sonhos e expectativas. Tanto é que, recentemente, uma cliente me pegou de surpresa com a pergunta "O irracional está no inconsciente?". Afinal, o que exatamente seria a mente, e como ela poderia, em seu compartimento inconsciente, abrigar a irracionalidade? Por ter me dado o combustível necessário para pensar bastante sobre o assunto, dedico este texto à dona de uma das questões mais inusitadas que já me foram endereçadas. E, agora com mais tempo e espaço, tentarei respondê-la em pormenores.


Longe de querer trazer o inconsciente psicanalítico para o foco desta discussão, acho válido começarmos com uma definição formal:

Em psicanálise, o inconsciente é um lugar desconhecido pela consciência: uma "outra cena". Na primeira tópica elaborada por Sigmund Freud, trata-se de uma instância ou um sistema (Ics) constituído por conteúdos recalcados que escapam às outras instâncias, o pré-consciente e o consciente (Pcs-Cs). Na segunda tópica, deixa de ser uma instância, passando a servir para qualificar o isso [ou id] e, em grande parte, o eu [ou ego] e o supereu [ou superego] (Roudinesco & Plon, 1998, p. 375).

A noção popular de que o inconsciente é um lugar foi provavelmente difundida pelos psicanalistas. Apesar disso, dizer que o inconsciente é um lugar é diferente de dizer que ele é "um sistema (Ics) constituído por conteúdos recaldados que escapam às outras instâncias". O verbo "escapar" pode até sugerir que os conteúdos fogem de um lugar para outro, mas o termo pode ter sido usado apenas num sentido metafórico. Seja como for, comumente vemos o inconsciente ser tratado como uma região, um espaço ou um lugar que detém conteúdos mentais ocultos.

Conceber a mente como uma coisa que abriga conteúdos mentais não é uma atitude exclusiva dos psicanalistas. Para alguns cognitivistas, representações mentais podem ser armazenadas, recuperadas e transformadas pelas pessoas – ou por suas mentes. Porém, uma vez que nenhum cognitivista admitiria que as representações são armazenadas tal como armazenamos azeitonas em potes, fotografias em álbuns e cartas em envelopes, logo sua teoria da memória não é mais do que uma elegante metáfora. Mesmo que isso esteja claro, os cognitivistas certamente ajudam a difundir a noção de que existem "lugares mentais".

Mas eu não consigo sequer imaginar o que possa ser um lugar mental. Há uma distância semântica enorme entre dizer que joias, ouro e escrituras estão no cofre de um homem e dizer que alucinações, crenças e sonhos estão na mente de um homem. Por ser constituído por dimensões como altura, espessura e profundidade, um cofre possui um espaço interno no qual coisas podem ser seguramente guardadas. Naturalmente, o mesmo não pode ser dito sobre a mente.

Afinal, o que é a mente? Creio que não haja maior utilidade para o termo "mente" senão a de estabelecer uma categoria para os eventos privados, isto é, a de amarrar conceitualmente os eventos comportamentais que não podem ser publicamente observáveis. Exemplos de eventos privados são as lembranças, as ideias e as fantasias. Mas o fato de que não podemos observar os eventos privados de outras pessoas não significa que eles estejam ocorrendo num espaço interno e particular. Quando, de olhos abertos, eu imagino uma sereia deitada sobre a minha cama, ela não está em minha mente, mas justamente sobre a minha cama. A impossibilidade de você enxergar a sereia que eu enxergo privadamente não é uma prova de que haja um espaço mental, e sim de que podemos ver coisas que não são publicamente visíveis. Além do mais, a possibilidade de lembrarmos o que comemos no café da manhã não é uma prova de que armazenamos fatos na mente, e sim de que as respostas privadas podem surgir tal como surgem a dilatação da pupila, o espirro e uma cambalhota – respostas que também não podem ser armazenadas.

Em suma, a mente não é uma coisa que possui um espaço interno. No máximo, "mente" pode ser entendido como um termo que faz referência ao conjunto de eventos privados que podemos apresentar, tal como "time" é um termo utilizado para fazer referência a um conjunto de atletas. Neymar está no time que representará o Brasil na Copa apenas no sentido de que ele compõe a seleção brasileira, e eu posso me lembrar de seu rosto "em minha mente" apenas no sentido de que eu posso vê-lo privadamente. Tratar a mente como um lugar pode ser um reflexo do fato de que diariamente fazemos descrições dos eventos (e.g., festas, manifestações e jogos) que ocorrem e dos objetos (e.g., chaves, documentos e casas) que estão em lugares especificáveis do mundo. Uma vez que os objetos e os eventos privados não podem ser percebidos por todos, tenderíamos a descrevê-los como estando num lugar particularmente interno. Essa noção equivocada talvez tenha se difundido por ser intuitiva e por facilitar a comunicação, e a situação não melhora muito ao dizermos que os eventos privados estão no cérebro. A "metáfora espacial da mente" – ou, talvez melhor, a "falácia espacial da mente" – pegou, e agora cabe aos filósofos avaliar seus benefícios e prejuízos.


Para evitar (mais) prejuízos: algumas palavras sobre o inconsciente

Conforme alertam Bennett e Hacker (2003), confusões conceituais podem gerar afirmações, teorias e práticas confusas. O fato de que nos comportamos ocasionalmente sem saber por que não é uma prova de que exista uma "mente inconsciente", e sim de que nosso comportamento é afetado por eventos dos quais podemos não ter consciência. Embora possa não ser um grande pecado sustentar que esses eventos são inconscientes, é importante lembrar que nós, seres cognoscentes, é que podemos ser ou estar inconscientes deles. É apenas porque admitimos isso que há algum sentido em dizer que existem eventos inconscientes.

Assim, Maria pode começar a cantar uma música, estar irritada e se lembrar diversas vezes de uma pessoa durante o dia sem saber exatamente por quê. Pode-se dizer que ela está inconsciente de – ou, simplesmente, que não sabe – por que está emitindo essas respostas. Mais tarde, ela pode vir a descobrir que está cantando o hino nacional porque a Copa do Mundo está chegando, que está irritada porque está no período pré-menstrual e que está se lembrando de João porque passará perto de sua casa no dia seguinte. Se parece aceitável – ainda que questionável – dizer que Maria está se lembrando de João porque possui um desejo inconsciente de encontrá-lo, seria engraçado dizer que as propagandas sobre a Copa e seus hormônios são inconscientes.

Bennett e Hacker (2003) enfatizam que perceber, conhecer e estar consciente (ou inconsciente) são predicados que só fazem sentido quando aplicados a um animal como um todo. Quando atribuímos esses predicados a partes ou a propriedades de um animal, como ao cérebro, à mente ou ao inconsciente, estamos cometendo uma falácia mereológica. Disso decorre que não é logicamente correto dizer que o cérebro pensa (cf. Calvin, 1998), que existem mentes perigosas (cf. Silva, 2008) e que o inconsciente é criativo (Jung). O correto seria dizer que os seres humanos pensam, alguns são perigosos e outros são bastante criativos. Se assim for, a maior parte das abordagens da Psicologia – e as neurociências – são erguidas e discutidas por princípios e conceitos logicamente equivocados.

Mesmo que, em função da tradição, decidamos preservar a expressão "eventos inconscientes", alguns problemas preliminares, e ainda mais espinhosos, precisam ser abordados: Os eventos privados inconscientes (e.g., sentimentos, ideias e desejos) existem? Se existem, o que exatamente são? E, se não podem jamais ser observados, como podem ser estudados? Caso essas perguntas não sejam satisfatoriamente respondidas, corremos o risco de desperdiçar décadas em estudos, ensino e práticas baseados em confusões conceituais.


Voltando ao caso

Feitas as devidas considerações, pode-se dizer que a pergunta "O irracional está no inconsciente?" é duplamente confusa. Em primeiro lugar, não há lugares mentais nos quais coisas podem estar. Em segundo lugar, não existe uma coisa a que poderíamos chamar "o irracional". Em vez disso, podemos dizer que existem comportamentos irracionais ou, mais precisamente, pessoas que se comportam de modo irracional.

Frequentemente, dizemos que um indivíduo comporta-se racionalmente quando ele analisa a situação antes de agir, isto é, quando ele prevê as possíveis consequências de suas ações e, assim, se comporta de acordo com essas previsões. Como afirmou Skinner (1969), "as 'razões' que governam o comportamento do homem racional" são descrições das "relações entre as ocasiões nas quais ele se comporta, seu comportamento e suas consequências" (p. 284). Ao contrário, um indivíduo que age irracionalmente seria aquele que, em certas situações, age sem considerar o que pode vir a ocorrer.

Assim, podemos dizer que há uma relação entre agir irracionalmente e agir inconscientemente. Ao agir irracionalmente, um indivíduo estaria agindo sem ter consciência do que poderá acontecer e/ou, em certas ocasiões, sem saber por que está agindo de certa maneira. Nesse sentido, poderíamos dizer que as crianças e os loucos tendem a agir irracional e inconscientemente, e é possivelmente por isso que não os penalizamos legalmente por seus atos.

Se as definições acima estiverem minimamente adequadas, a pergunta "O irracional está no inconsciente?" poderia ser trocada por "Ao agirmos irracionalmente, estamos sendo afetados por eventos dos quais não temos consciência?", "Eventos dos quais não temos consciência podem nos induzir a agir irracionalmente?" ou, mais simplesmente, "Ações 'irracionais' são também ações 'inconscientes'?". Salvo melhor juízo, poderíamos responder a esta última pergunta com um "Sim: por desconhecermos ou não considerarmos as possíveis consequências de nossas ações, as ações 'irracionais' seriam necessariamente ações 'inconscientes'". E, às duas primeiras perguntas, poderíamos exclamar "Sim, tal como todo e qualquer comportamento!".

Qualquer que seja o tipo de comportamento sobre o qual estamos discutindo, é impossível termos consciência de todas as variáveis que o afetam. Incontáveis eventos neurobiológicos estão por trás de cada movimento que fazemos, e nem mesmo a mais potente máquina de imageamento cerebral já construída poderia detectá-los. E, em qualquer ambiente que estejamos, não somos capazes de tomar consciência de todos os eventos e objetos que imediatamente nos afetam (em menor ou maior escala). Mesmo que pudéssemos divinamente ver, ouvir e sentir todos os tipos de propriedades e ocorrências do ambiente circundante, ainda precisaríamos notá-los de uma só vez, e não, como conseguimos fazer, apenas uns de cada vez. Portanto, não podemos escapar do fato de que ignoramos a maior parte daquilo que influencia nossas condutas, pensamentos e sentimentos. E, como espero ter demonstrado, isso está longe, bem longe de significar que as causas imperceptíveis de nossas ações estão numa "mente inconsciente" – seja lá o que isto signifique.


Referências

  • Bennett, M. R., & Hacker, P. M. S. (2003). Fundamentos filosóficos da neurociência. Lisboa: Instituto Piaget.
  • Calvin, W. H. (1998). Como o cérebro pensa: a evolução da inteligência, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Rocco.
  • Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
  • Silva, A. B. B. (2008). Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro: Objetiva.
  • Skinner, B. F. (1969). Contingencies of reinforcement: a theoretical analysis. New Jersey: Prentice-Hall.

6 comentários:

  1. Excelente texto!!!! Creio particularmente que a pedra angular das discussões venha a ser mesmo a tentativa de sairmos de um MISTÉRIO para um PROBLEMA acerca da consciência... Creio, meu amigo Daniel, que muitos dos problemas que perpassam significativa parcela da literatura que abordam a temática (os temáticas próximas) tenham suas principais dificuldades escondidas atrás da formularização errônea dos próprios Problemas que se busca tratar. Note, estamos muito longe de termos um razoável entendimento do que venha a ser, de fato, a consciência. Todavia, algo que me parece muito mais complexo é utilizado o tempo todo, nos mais diversos discursos sem a menor preocupação conceitual, como é o caso do termo INCONSCIENTE.... Chega a ser bizarra a forma despreocupada e quase sempre descabida do uso deste termo em textos que se apresentam como científicos/sérios...

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    1. Exatamente, Nivaldo: precisamos definir bem nossos termos, nossos problemas e nossa maneira de estudá-los. E, inevitavelmente, essa é uma tarefa bastante complicada quando queremos abordar o comportamento humano.

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  2. Confesso que ainda não sei o que pensar sobre o texto, Daniel. Está bem escrito, como sempre, mas fiquei com a sensação de que não avança muito a discussão em relação a qualquer texto similar que escreveu anteriormente. Talvez por saber que tem se dedicado a pensar uma solução para a problemática dos eventos privados como causais ou epifenomenalistas, fiquei com a sensação de que tentou resgatar para si mesmo as razões que teríamos para rejeitar o mau uso dos constructos mentais - coisa que já abordou anteriormente, mas que a imersão no cognitivismo pode eventualmente voltar a obscurecer.
    Mas posso ter falhado em captar a mensagem.

    Da minha parte, me saltaram aos olhos os trechos em que fala do cognitivismo, das neurociências e da metáfora da armazenagem. Isso porque acabei de escrever um artigo que procura revisar o conceito de memória nas neurociências. Você provavelmente sabe disso melhor do que eu, mas me dediquei a fazer algo decente: fui ao localizacionismo de Gaal, a relação cérebro-comportamento desvelada por Broca, Wiernick e outros precursores; depois, especificamente na memória, os 7 mais ou menos dois estímulos de Miller, o caso H.M. e suas implicações, o conceito de memória de trabalho de Baddeley, depois o buffer episódico do mesmo, passando passando pelo surgimento de conceitos como memória autobiográfica, memória semântica, etc. etc.
    Acima de tudo, em que contexto surgem, quais evidências/pesquisas levam a estes conceitos, como são propostos por seus autores, o que dizem deles os revisionistas.

    Nutro grande simpatia por estes estudos, a qualidade metodológica, o cuidado experimental, a preocupação em fazer algo intelectualmente honesto e baseado em evidências.
    Mas, cara, agora sinto-me bastante seguro para dizer: que confusão conceitual! Que pobreza filosófica! A impressão que havia cultivado através da leitura de Pinker, Dennett e Teixeira mostrou-se acurada: há pouquíssima preocupação em definir os conceitos e parece haver a crença de que os dados levarão a refinamentos teóricos, sem ser necessária uma análise conceitual. Como resultado, há um acumulo imenso de dados, um acumulo imenso de constructos, que vão se embaralhando, tendo subdivisões, sobrescrevendo-se,.. Algumas vezes pensei na expressão "psicanálise baseada em evidência", por observar uma proliferação viral de conceitos e constructos, em um verdadeiro aparelho psíquico cognitivo, que é modificado a partir de dados de pesquisas.

    O que parecem não se darem conta é que nenhum dado é, apesar do nome, "dado", mas essencialmente interpretado dentro do esquema conceitual. No cerne do que considero equivocado está a metáfora do armazenamento. Claro, se você perguntar para qualquer um deles se acredita que de fato há um depósito no cérebro, negarão. Mas, quando distraídos, ocupados na rede conceitual, a ideia de que conteúdos são armazenadas e recuperados parece nortear as ideias. É como se soubessem que a ideia está equivocada, mas é mais confortável trabalhar em cima dela do que fazer uma poda conceitual atrás de novas abordagens ao problema. Isso é endossado pela preguiça filosófica dos textos.

    Este tipo de coisa me faz ficar otimista de que o paradigma comportamental possa vir a ser resgatado, já que, a meu ver, soluciona vários dos problemas com o qual têm se emaranhado.

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    1. Pedro, se lhe entendi bem, eu não procuro imergir novamente no cognitivismo. E, diferentemente do que fiz em meus textos anteriores, procurei basicamente 1) criticar a noção popular de que a mente é um espaço/lugar, 2) sugerir que "mente" é um termo que persiste por estabelecer uma categoria para os eventos privados (embora sua reificação gere a "falácia espacial") e, por fim, 3) problematizar a noção igualmente popular de que existe algo como uma mente inconsciente. Espero poder futuramente abordar o item 3 em pormenores.

      Sobre os outros pontos que você levantou, estou totalmente de acordo! Como acabei de responder ao Nivaldo, precisamos definir bem nossos termos, nossos problemas e nossa maneira de estudá-los.

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  3. Esse texto realmente faz refletir sobre uma séria de questões, o lugar da mente por exemplo é um grande empecilho, porém o jeito que você especificou o mesmo pode ser um bom rumo a se tomar em relação a isso. Quanto às questões referentes as representações mentais, realmente são cobertas por definições equivocadas, porém devido minha estima pela Psicologia Cognitiva acredito que precisamos redefinir suas conceituações ao invés de excluir as mesmas...
    Para tanto a análise em torno da Comportamental que você fez é excelente, faz pensarmos uma série de aspectos que envolvem a Psicologia Cognitiva, porém como não conheço profundamente nenhuma das duas, apenas estou iniciando minha trajetória na Psicologia Cognitiva, acredito que embora os Behavioristas deem conta de explicar bem certas coisas, sinto que as questões de como se formam os comportamentos ainda ficam muito superficiais, porém como ressaltei no início não desconsidero a hipótese de que isso seja por eu não conhecer profundamente o mesmo.
    No mais, parabéns pelo texto, certamente merece muitas reflexões em torno!

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    1. Confesso que ainda preciso ler mais sobre as "representações mentais", Natanna. Mas, pra início de conversa, eu não me simpatizo com a ideia de que os eventos privados se pareçam com pinturas, mapas e palavras, os quais podem ser vistos como artifícios criados para representar - ou fazer referência a - lugares, eventos e ideias reais.

      Obrigado! Um abraço!

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