domingo, 23 de novembro de 2014

A falácia mereológica da Neurociência é uma chatice analítica da Filosofia?

Antes de ontem, ao apresentar um pequeno trabalho intitulado "A falácia mereológica da Neurociência" no XIII Congresso Brasileiro da SBNp, eu fui questionado sobre se os problemas filosóficos, sobretudo os conceituais, são realmente relevantes para a Neurociência. "Afinal", perguntaram-me, "em que sentido isso é importante para nós?" Infelizmente, o descaso do avaliador do meu painel não foi desfeito por eu ter mencionado que os conceitos que utilizamos na ciência influenciam não apenas as perguntas que formulamos, mas também como interpretamos nossos dados e como eles são divulgados pela mídia. E, cá para nós, uma afirmação como "uma parte do cérebro fora do seu controle é quem escolhe por você" está longe de ser inofensiva e, como pretendo demonstrar, não está perto de fazer algum sentido.


A falácia mereológica da Neurociência é o erro de se atribuir ao cérebro predicados que só fazem sentido quando atribuídos ao indivíduo inteiro (Bennett & Hacker, 2003). Exemplos desses predicados são "percebe", "sente" e "toma decisões". Nós sabemos o que significa dizer que um indivíduo percebe, sente e toma decisões, mas não há um sentido claro na afirmação de que um cérebro percebe, sente e toma decisões. Para que haja algum sentido em atribuir esses predicados ao cérebro, é necessário estabelecer critérios neurobiológicos que os justifiquem. Por exemplo, enquanto aprendemos (e depois disso), uma série de modificações sinápticas ocorrem no cérebro. Caso convencionemos chamar essas modificações de "aprendizagem neural", então teríamos um bom critério as modificações sinápticas para dizer inteligivelmente que "o cérebro aprende". Mas, como Bennett e Hacker demonstraram (2003), os neurocientistas não estabelecem qualquer tipo de critério para atribuírem predicados (originalmente) psicológicos ao cérebro.

Mesmo que os neurocientistas estabelecessem esses critérios, haveria um segundo problema a ser encarado, a saber, o de aqueles predicados se tornarem ambíguos. Haveria, por exemplo, o aprender (psicológico) e o "aprender" (neurobiológico), o lembrar (psicológico) e o "lembrar" (neurobiológico) e o planejar (psicológico) e o "planejar" (neurobiológico). Isso geraria muitíssimo mais confusão ao nos comunicarmos do que costuma gerar o uso rotineiro do termo "manga" que pode ser um fruto, a parte de um vestuário ou um tubo flexível.

Vejamos um exemplo de como o uso indiscriminado dos predicados psicológicos pode gerar confusões. Na reportagem de Salvador Nogueira (2008) intitulada O livre-arbítrio não existe: Você é escravo do seu cérebro, John Dylan-Haynes comenta que, "nos casos em que as pessoas podem tomar decisões em seu próprio ritmo e tempo, o cérebro parece decidir antes da consciência". O que pensar de uma afirmação como essa? Quer dizer que existe uma "decisão pessoal", uma "decisão cerebral" e, de bônus, uma "decisão da consciência"? O que exatamente elas são, qual é a diferença entre elas e como elas se relacionam? E, uma vez que "você é escravo do seu cérebro" (Nogueira, 2008), ou, como a Galileu alardeou no ano passado, uma vez que "VOCÊ NÃO DECIDE", seria o caso de a decisão pessoal ser uma ilusão?

Notem como a confusão conceitual é capaz de suscitar tanto interpretações confusas de experimentos quanto pseudoproblemas (filosóficos e científicos). Ora, os neurocientistas podem até demonstrar que a decisão de uma pessoa numa situação controlada pode ser prevista a partir da atividade de seu cérebro, mas isso não significa que o cérebro é quem decide nem que as pessoas não tomam decisões. Tal como o esclarecimento sobre o que ocorre no cérebro antes de dizermos "Obrigado!" não implicaria em que as pessoas não dizem "Obrigado!", o esclarecimento sobre os processos neurobiológicos que antecedem uma decisão não implica em que as pessoas não tomam decisões. Naturalmente, o esclarecimento conceitual evitaria esse tipo de confusão.


E então, o que fazermos com isso?

Como adiantei, minha tentativa de demonstrar que o rigor conceitual pode beneficiar a Neurociência não foi bem sucedida. O avaliador do meu trabalho comentou que "aquele livro (o Fundamentos filosóficos da Neurociência, a partir do qual baseei meu trabalho) é muito chato", e um colega me disse noutra ocasião que os neurocientistas vão indo muito bem sem esse tipo de preocupação. Por isso, por que não podemos simplesmente deixar as coisas como estão?

Boa parte dos neurocientistas, sobretudo aqueles que integram a Neurociência Cognitiva, assumiu a árdua tarefa de investigar as bases neurobiológicas do comportamento (e, caso queiram distinguir, da cognição). Sua investigação é empírica, e não conceitual, e isso explica por que eles estão mais interessados em causas do que em definições. Não há nada de lamentável nisso. Mas, se alguns filósofos se dedicam a investigar nossos erros conceituais e a tentar nos ajudar a evitá-los e a explicar por que pode ser bom evitá-los , por que não darmos ao menos um pouco de atenção ao assunto? Sempre gostei da característica interdisciplinar da Neurociência, mas eu estou começando a sentir que os neurocientistas não curtem uma "crítica interdisciplinar".

Eu, a partir do meu cérebro e sob a boa influência dos meus colegas da Filosofia, decidi não deixar as coisas como estão.


Referências

  • Bennett, M. R., & Hacker, P. M. S. (2003). Fundamentos filosóficos da Neurociência. Lisboa: Instituto Piaget.
  • Nogueira, S. (2008). O livre-arbítrio não existe: a ciência comprova: você é escravo do seu cérebro. Disponível em: http://super.abril.com.br/saude/livre-arbitrio-nao-existe-447694.shtml 

9 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, Daniel!

    Esta resistência existe em parte significativa da comunidade científica, particularmente entre pesquisadores experimentais. É uma pena e, a meu ver, uma ingenuidade danada. Ignoram, por exemplo, que essa postura, que supostamente viabiliza uma crítica à filosófia (ao se questionar quais os efeitos práticos delas, que deveriam manter assim "porque funciona", etc.), é ela mesma uma posição filosófica e fruto de uma concepção filosófica bem definida pelos seus critérios sobre o que é conhecimento, realidade, critério de verdade e outros.

    Na Filosofia são apresentadas questões relativas a como é possível estudar e conhecer algo, qual a melhor forma de se abordar um fenômeno e por que, por que determinadas concepções são insustentáveis ou pedem revisão, como elas determinam nossa prática científica, a maneira como descrevemos o mundo e seu funcionamento e como isso altera também nossa vida cotidiana. A mudança de uma concepção filosófica pode alterar drasticamente como cientistas conduzirão suas pesquisas, como pessoas tomarão suas decisões, como governos planejarão seus investimentos e leis, o que irá ser estudado e difundido daqui pra frente e o que será considerado ultrapassado.

    O próprio paradigma cognitivo que adotam só se tornou soberano por questões filosóficas, quando supostamente Chomsky apontou problemas incontornáveis na teoria skinneriana. Não era por falta de resultados da Análise do Comportamento e excesso do cognitivismo, mas simplesmente porque se conclamou que o behaviorismo radical havia sido REFUTADO. A teoria, a filosofia, não os resultados. E isso foi tão divulgado que até hoje vemos aí Steven Pinkers da vida atacando espantalhos do behaviorismo radical.

    A única maneira de sobrepor um paradigma ao outro é através do embate filosófico. E os paradigmas, frutos da concepção e seleção de debates filosóficos, irão guiar pesquisas, justificar direcionamento de verbas, embasar intervenções e, fundamentalmente, promover às pessoas aquilo que se concluiu ser a maneira pela qual podemos fazer mais e melhor por elas e pela qual elas mesmas podem basear suas ações.

    É dolorosamente ingênuo afirmar que isso é "chatice" e "deixa pra lá, tá funcionando". O paradigma da mecânica clássica estava funcionando muito bem até Einstein propor uma nova forma de descrever aquilo, apontar problemas no modelo antigo e propor um mais parcimonioso, ainda que contra-intuitivo. Apenas décadas depois da proposta quântica é que começamos a ter os primeiros maravilhosos resultados dessa mudança de paradigma. Não fosse a crítica de Einstein ao modelo mecânico e a proposta de um novo, estaríamos até hoje progredindo na Física sim, mas mais lentamente, com um acúmulo absurdo de dados, muita confiança (porque está funcionando) e uma ciência inchada: com uma quantidade de informação, dados de pesquisas, bem maior do que mudanças práticas consequentes destes.

    Tenho a impressão que a neurociência está neste barco aí e um novo modelo consistente, uma mudança benéfica de paradigma, iria economizar pesquisas, interpretações, diminuir equívocos e dar um direcionamento mais certeiro; como parar de caminhar dentro d'água e passar a deslizar sobre o gelo.

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    1. "Tenho a impressão que a neurociência está neste barco aí e um novo modelo consistente, uma mudança benéfica de paradigma, iria economizar pesquisas, interpretações, diminuir equívocos e dar um direcionamento mais certeiro; como parar de caminhar dentro d'água e passar a deslizar sobre o gelo."

      Assim espero, meu amigo! Ou melhor, não espero: estou tentando fazer acontecer! Obrigado pelo comentário.

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  2. Pena que estar sem tempo suficiente agora.... valeria uma dedicação um pouco mais aprimorada ao assunto, todavia, parabéns pela crítica!!!!

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  3. Ausência de paradigma bem estabelecido + concorrência de várias linguagens, de diferentes disciplinas, encerrando-se no discurso + má formação = "seu cérebro decide quaqluer coisa". Quando a Torre de Babel cair, muita coisa vai melhorar na área da ¨mente¨. Parabéns pelo texto.

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  4. Caro Daniel, parabéns por sua posição. Sou professor de ética, e estou neste momento escrevendo um artigo criticando um livro de Sam Harris, The Moral Landscape, que tb segue esta linha que eu chamo de "reducionismo científico". Acho que o problema não é a ciência em si - as descobertas sobre como o cérebro funciona com certeza são importantes -, mas sim a ideia de usar a ciência para ir além do mero fato científico, achando que esta pode determinar noções que envolvem análise conceitual, como livre-arbítrio, valores etc. Este tipo de reducionismo tende a ganhar cada vez mais força hoje em dia, correndo o risco de chegar ao nível institucional (afetando nosso sistema jurídico, por exemplo). E tende a gerar uma sociedade embrutecida, que desconsidera a importância de se refletir sobre noções importantes - inclusive moral, direitos, democracia etc -, acreditando que a ciência trará todas as respostas. Sam Harris, no livro que mencionei, chega a chamar as reflexões dos filósofos sobre a moral de "boring", em uma atitude parecida com a que vc descreveu. Acho que filósofos e pessoas de outras áreas - o reducionismo científico tb afeta, acho, a psicologia e a sociologia, entre outras -, devemos nos esforçar para combater o fortalecimento desta tendência. O que , mais uma vez, não significa combater "a ciência", mas sim o reducionismo.

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    1. "O que, mais uma vez, não significa combater 'a ciência', mas sim o reducionismo."

      Assino embaixo, Rafa! Sucesso aí no seu trabalho, camarada!

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  5. Não entendo como um avaliador de congresso se utiliza do adjetivo "chato" como fundamento para seu ponto de vista. Este livro foi citado 1248 vezes; sei que há controvérsias neste tipo de avaliação, mas esse número quer dizer alguma coisa...

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    1. Oi, Ana! O comentário do avaliador foi bastante informal, e, no momento, eu até o levei na brincadeira, já que todos nós podemos mesmo achar alguns livros chatos. O lamentável é que, concomitantemente a essa qualificação, ele desqualificou, sem muitos argumentos, o TRABALHO daqueles autores. Eu acho a "História da loucura" do Foucault um livro chato (ao menos até onde eu consegui lê-lo), mas o trabalho dele está longe de ser irrelevante.

      Um abraço!

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