Embora a Filosofia da Mente possua
uma agenda muito ocupada com os problemas da consciência, há uma questão
que, para os psicólogos mais céticos e pragmáticos, pode ser muito mais
atraente e envolvente – mas igualmente polêmica. Essa questão, que
parece passar intocada pelos graduandos de Psicologia, por seus
professores e para o público leigo, é a de se os estados mentais
inconscientes(1) realmente existem – logo eles, que são rotineiramente
invocados para se explicar o comportamento. Antes disso, é
impressionante como até mesmo nós, clínicos e/ou professores, temos
dificuldade em descrever o que são esses estados mentais – ou o que é a mente, afinal.
Mas eu não estou aqui para tentar resolver o problema, e sim, entre
outros motivos – inconscientes? –, para colocá-lo sobre a mesa. Devo
adiantar que o que virá a seguir não é uma análise sobre os conteúdos e
processos inconscientes postulados pela Psicanálise, da qual eu não
tenho o menor domínio, e sim sobre a tese mais genérica e popular de que
existe uma fatia da mente que trabalha e nos afeta sem sequer
percebermos.
Em seu livro "A redescoberta da mente", o filósofo John Searle (1997/2006) comentou que
nossa noção pré-teórica, ingênua, de um estado mental inconsciente é a ideia de um estado mental consciente menos a consciência. Mas o que exatamente isso significa? Como poderíamos subtrair a consciência de um estado mental e ainda resultar um estado mental? Desde Freud, ficamos tão acostumados a falar sobre estados mentais inconscientes que perdemos de vista o fato de que a resposta a essa questão não é absolutamente óbvia (pp. 218-219).
Basicamente, a ideia de Searle é a de que acreditamos que os estados mentais inconscientes sejam idênticos aos estados mentais conscientes, exceto por não serem conscientes.
O problema disso é que, sem as propriedades fenomênicas, ou conscientes
(e.g., cor, som e sensação), que caracterizam os estados mentais, quase
nada resta para nos prover um entendimento do que sejam esses estados
mentais. Especificamente, o que restaria das noções de raiva e desejo,
enquanto eventos sentidos, caso retiremos as sensações que lhes
caracterizam? E o que restaria da noção de lembrança, enquanto, digamos,
um conjunto de eventos privadamente vistos (e.g., o rosto de Michael Jackson) ou ouvidos
(e.g., o refrão de "Billie Jean"), caso retiremos os componentes
visuais ou auditivos que lhe caracterizam? Sem essas propriedades,
passamos a não ter a menor ideia do que se tratam a raiva, o desejo e a
lembrança inconscientes. Tal como uma cadeira sem um encosto, um assento
e uma base/pés está longe de se parecer com o que entendemos por
"cadeira", um estado mental sem suas propriedades fenomênicas está longe
de se assemelhar com o que conhecemos por "estado mental". Diante
disso, podemos justificadamente questionar não só em que exatamente os
estados mentais inconscientes consistem, mas também se eles realmente existem.
"Essas são as suas novas cadeiras?" |
Os estados mentais inconscientes existem?
Se concebermos um estado mental como um evento subjetivamente privado
(cf. Creel, 1980), isto é, como um evento que só pode ser experimentado
pelo indivíduo que o apresenta (e.g., os sentimentos, as lembranças e
os sonhos), podemos logicamente concluir que "Não, os estados mentais
inconscientes não existem, pois não faz sentido dizer que apresentamos experiências conscientes
de eventos dos quais não temos consciência". Nesse caso, dizer que os
eventos mentais podem ser inconscientes é tão inconsistente quanto a
crença de Quico – aquele da vila do Chaves – de que existia uma bola quadrada. Tal como não podemos imaginar o que seria uma bola quadrada,
parece que não podemos inteligivelmente conceber o que seriam os
estados mentais inconscientes. Assim, para se defender que os estados
mentais inconscientes realmente existem, é necessário fazer com que a
noção de "mental" abranja mais do que os tipos de evento de que podemos
ter experiência privada. Isso, como veremos agora, foi o que Searle
procurou fazer para tentar solucionar o problema:
A ontologia de estados mentais inconscientes, durante o tempo em que são inconscientes, consiste inteiramente na existência de fenômenos puramente neurofisiológicos (p. 228, destaque meu).
Dentre os processos neurofisiológicos inconscientes, alguns são mentais, outros não. A diferença entre eles não está na consciência, porque, por hipótese, nenhum é consciente; a diferença é que os processos mentais são candidatos à consciência, porque são capazes de causar estados conscientes (p. 232).
Em suma, Searle estendeu aos processos neurofisiológicos conscientizáveis a noção daquilo que podemos chamar de "mental". Os estados mentais inconscientes seriam, nesse sentido, os estados neurofisiológicos
do cérebro que, embora em estado "latente", ou "disposicional", podem
ocasionalmente ser experimentados conscientemente por quem os apresenta. O autor cita a crença como um tipo desses estados mentais. Por exemplo, um indivíduo que tem a crença de que o Cristo Redentor está no Rio de Janeiro não deixa de possuir essa crença enquanto está em sono profundo, ou mesmo, estando desperto, enquanto não está pensando no assunto. Mas, nesses casos, essa crença existiria apenas enquanto um estado mental neurofisiológico passível de ser conscientizado.
Como podemos ver, a solução de Searle oferece uma noção muito menos colorida, ou psicológica, da natureza dos conteúdos que, a despeito de nossa consciência, afetam nosso comportamento. Especificamente, o autor sublinhou que, "durante o tempo em que os estados [mentais] estão totalmente inconscientes, não há simplesmente nada lá, exceto estados e processos neurofisiológicos" (p. 229). Voltando à analogia que fiz anteriormente, é como se a bola quadrada do Quico realmente existisse, mas ela não seria quadrada conforme as regras da geometria.
Como podemos ver, a solução de Searle oferece uma noção muito menos colorida, ou psicológica, da natureza dos conteúdos que, a despeito de nossa consciência, afetam nosso comportamento. Especificamente, o autor sublinhou que, "durante o tempo em que os estados [mentais] estão totalmente inconscientes, não há simplesmente nada lá, exceto estados e processos neurofisiológicos" (p. 229). Voltando à analogia que fiz anteriormente, é como se a bola quadrada do Quico realmente existisse, mas ela não seria quadrada conforme as regras da geometria.
Se
a proposta de Searle parece salvar a tese de que os estados mentais
inconscientes existem, ela parece fazê-lo sob uma condição: desde que
esses estados são, no final das contas, estados neurofisiológicos, seu
estudo não poderia mais pertencer à Psicologia, e sim à Neurociência. Ora, uma vez que os estados mentais inconscientes não são psicologicamente mentais, e sim, por mais estranho que pareça, neurofisiologicamente
mentais, eles passam a demandar um método de análise distinto, e talvez
uma teia conceitual alternativa. Mesmo que a Neurociência tome a
Psicologia como uma forte aliada, o funcionamento do sistema nervoso
central está longe de ser o objeto de estudo que os cientistas da
mente/do comportamento primordial e oficialmente elegeram. Portanto, a
solução de Searle para o problema dos estados mentais inconscientes
parece não ser muito útil àqueles psicólogos interessados em estudar
esses estados mentais sob a perspectiva psicológica – a não ser no sentido de fazê-los desistir desse projeto ou, quem sabe, de incentivá-los a se tornarem neurocientistas.
Algumas considerações
Obviamente,
a proposta de Searle não é a palavra final sobre o problema dos estados
mentais inconscientes. Embora ele tenha conseguido dar um contorno
ontológico a esses estados, eu não estou tão satisfeito quanto à
adequação de se mentalizar os estados neurofisiológicos passíveis
de serem experimentados conscientemente por quem os apresenta. No meu
ponto de vista, essa saída é tão estranha quanto seria dizer que, uma
vez que a água em estado sólido pode se quebrar, seu estado líquido seria também quebradiço. A água tem a "disposição" para se quebrar e o cérebro tem a "disposição" para gerar estados mentais conscientes (i.e., dependendo da circunstância, eles podem apresentar essas características), mas não me parece correto dizer que a água líquida é quebradiça e que os estados neurofisiológicos conscientizáveis são estados mentais inconscientes. No final das contas, tenho a impressão
de que essa extensão conceitual não nos isenta de mais problemas
conceituais.
Por fim, não quero deixar a impressão de que eu não acredito que o comportamento seja também
causado por variáveis das quais não temos consciência. É claro que
essas variáveis existem. A questão a ser enfrentada é simplesmente a de
se algumas dessas variáveis são do tipo mental, psíquico ou psicológico,
e a resolução desse problema começa, é claro, em se definir bem a
natureza dos estados mentais. A despeito da minha insatisfação quanto à
proposta de Searle, devo dizer que estou inclinado a pensar que a
Neurociência tem, ou terá, mais a nos oferecer acerca desse assunto do
que a própria Psicologia. Por outro lado, eu honestamente torço para
encontrar quem me convença do contrário.
Nota
(1) Como comentei noutra ocasião, mesmo que não seja um grande pecado chamar esses estados de "inconscientes", deve-se ter em mente que eles seriam inconscientes para o indivíduo, ou seja, eles seriam inconscientes apenas no sentido de que alguém não possui consciência deles (cf. Bennett & Hacker, 2003).
Referências
- Bennett, M. R., & Hacker, P. M. S. (2003). Fundamentos filosóficos da neurociência. Lisboa: Instituto Piaget.
- Creel, R. (1980). Radical epiphenomenalism: B. F. Skinner's account of private events. Behaviorism, 8(1), 31-55.
- Searle, J. (1997/2006). A redescoberta da mente. São Paulo: Martins Fontes.
Daniel,
ResponderExcluirParabéns pelo texto! Solicito sua autorização para utilizá-lo com acadêmicos do curso de psicologia e interessados que tenho contato...OK!
Entretanto, tratar o tema inconsciente requer andarmos MUITO vagarosamente tendo em vista a grande dificuldade do tema. Em primeiro lugar creio que tenhamos que ter clareza do conceito de consciência. Me parece que não temos como tratar o insciente se antes sabermos da consciência. Em segundo, concordo com você da necessidade de se focar uma análise bem mais rigorosa em relação à inconsciência tendo em vista que, principalmente no meio médico e psicológico, este termo parece ser utilizado como se seu conceito fosse algo plenamente claro e consensual entre a comunidade científica.... O QUE NÃO É O CASO! Em terceiro, o Searle, que é um autor que na área da linguagem eu tenho grande apreço, parece levar sua confusão construída através do argumento do Quarto Chinês para a análise do problema da Inconsciência...
....vamos conversando....
Solicitação mais que autorizada, Nivaldo!
ExcluirConcordo que não dá para estudarmos os estados mentais inconscientes sem termos uma clara noção do que se trata a consciência. O Searle também fez esse apontamento. Estão aí dois problemas espinhosos e entrelaçados que ainda nos renderão horas e horas de trabalho! Vamos conversando...
Ótimo texto, Daniel!
ResponderExcluirCara, lendo seus últimos parágrafos, pensei no seguinte: você entenderia a proposta do Searle como uma teoria reducionista dos estados mentais? Porque o reducionismo eliminativista dos Churchland é justamente aquele que entende que a forma reduzida de um fenômeno é o fenômeno verdadeiro - em relação ao que foi reduzido. Você concordaria com essa posição em relação aos estados mentais e sua neurofisiologia?
Obrigado pela leitura e comentário, Felipe! Eu não sei se a descrição neurofisiológica dos estados mentais equivalham necessariamente a uma redução ontológica. Não acho que a descrição neurofisiológica seja mais verdadeira do que a descrição psicológica, e parece que nem sempre a descrição neurofisiológica envolve elementos mais "elementares" do processo que pode também ser descrito/vivido em primeira pessoa. Em muitos casos, essas descrições podem ser vistas como "duas faces de uma mesma moeda", e aí o termo "identificação" poderia caber mais do que o termo "redução". Mas isso vai depender do que entendemos por esses dois termos, certo? Fale-nos mais sobre o reducionismo...
ExcluirSim rs. Então, existem quase uma dúzia de tipos de reducionismos. Vc fez referência à teoria da identidade, que também é uma ideia reducionista, mas que não entende a redução como a referência a algo "mais verdadeiro" em detrimento de outro nível explicativo que seria ilusório e descartável (como acontece no eliminativismo). A identidade torna somente os dois níveis iguais; vc pode falar do mesmo assunto tanto de uma forma quanto de outra (pode falar das emoções ou dos correlatos neurais delas, por exemplo).
ExcluirNo caso do Searle, fico sem entender a posição dele. Não sei se adota uma posição não reducionista - e, nesse caso, o que ele pensaria sobre a relação entre níveis mentais de explicação e níveis neurológicos? qual a ligação entre ambos? - ou se ele reserva mesmo algum espaço a alguma tese reducionista. O que acha?