quinta-feira, 11 de março de 2010

AVATAR: à nossa imagem e semelhança

Vertiginosos cenários tridimensionais, ficção científica e um belo mundo de plantas e bichos nunca antes vistos — mesmo que virtuais — são algumas das inebriantes atrações de AVATAR, uma das maiores produções hollywoodianas. Mas, e apesar das críticas, sua trama agitou-me um tanto mais. Baseado nos temas que vinha estudando atualmente, quais sejam, natureza humana e moralidade, teci uma análise de alguns paradoxos morais do filme e, em paralelo, inferi por que a maioria de nós comemorou a derrota humana.


Da trama e da natureza

Subia-me um ar de estranheza ao ver imagens dos Na´Vi (ou de suas réplicas ou clones, os "avatares") em cartazes ou na web. Suas faces lembram as faces humanas, exceto pela cor da pele (azul), a protuberância de alguns traços (como o nariz e as orelhas) e os belos pigmentos bioluminescentes. Parecem um híbrido: uma mistura de Homo sapiens vampíricos e engrandecidos com Smurfs. Mas o leve desconforto não superou minha curiosidade de conhecê-los pessoalmente.

No laboratório de em uma espaçonave intergaláctica, o fuzileiro naval Jake, paraplégico, interpretado por Sam Worthington, foi convocado para assumir o posto de seu irmão gêmeo falecido. Para cumprir suas missões (das quais tratarei posteriormente), Jake precisa se incorporar (não simplesmente se conectar), através de aparelhos sofisticadíssimos, em um avatar — um tipo de clone da espécie inteligente do planeta Pandora. A consciência dos "incorporadores" é totalmente canalizada para seus respectivos avatares. A ideia é um pouco similar à do Matrix, exceto pelo fato de que os avatares são biologicamente tão reais quanto os corpos dos "espíritos" que lhes animam. Para ser mais preciso, é como acordarmos, após um leve cochilo, no corpo de outra pessoa — ou de outro animal.

Mas tal animal, talvez não por acaso, assemelha-se conosco. E não me refiro apenas ao corpo (apesar da calda, altura e pele): mente e comportamento, ouso julgar, praticamente refletem nossa natureza. Religiosidade e mitos, canções, caça, monogamia, padrões hierárquicos, domesticação de animais, disposição para a guerra, linguagem (inclusive capacidade para aprender o inglês) e rituais de ascensão são alguns exemplos de comportamentos funcionalmente idênticos aos nossos. E todo repertório emocional humano fora transposto aos Na´Vi: de culpa e raiva à paixão e solidariedade, de alegria e gratidão a medo e vergonha. Só havia uma emoção que, mesmo que presente em uns poucos de nós, era um tanto mais ostentada e valorizada entre eles: o sentimento de transcendência e sagrado pertencimento ao ecossistema. Respeito e gratidão para com os animais, mesmo àqueles domesticados e sacrificados em razão da caça (digo, da fome), exemplifica uma conduta guiada por essa emoção. Nós (a população humana intergaláctica do filme), pelo contrário, estávamos lá para explorar: parasitas insensíveis aos interesses e sentimentos daquele povo.

Mesmo com o atenuante de que os Na´Vi não são Homo sapiens, agíamos como psicopatas. Queríamos o valioso minério soterrado nas raízes da árvore que para eles era sagrada — e que dela faziam morada. Se não o conquistássemos por bem, conquistá-lo-íamos por mal — porque os fins justificam os meios. E como eles são meros aborígines extraterrestres, como asseverou um dos missionários, não há por que sentir culpa. Jake, no entanto, decidiu remar contra a maré. Nosso fuzileiro infiltrou-se na comunidade na´viniana. Foi apropriadamente aculturado, apaixonou-se pela "princesa" e passou a se sentir como um deles. Sua missão perdera o sentido. Ajudá-los seria, no mínimo, uma forma de compensar suas faltas.


"Como se sente traindo sua própria espécie?" — indagou o vilão da trama ao fuzileiro. Eu — e talvez a maioria dos telespectadores — senti que Jake agira corretamente. E senti-me ao mesmo tempo aliviado e contente em razão da vitória dos Na´Vi. Não tive pena dos humanos. O desfecho da trama pareceu-me justo.

Da trama aos nossos corações

Como explicar tal transgressão? Somos prestativos, mais amorosos e solidários àqueles com quem parecemos. Não há laços mais fortes que os consanguíneos, e o sofrimento de um ser humano nos toca bem mais que o sofrimento de um coelho. Não deveríamos, portanto, "torcer" para que os propósitos humanos (extrair minério) fossem conquistados?

Como aludi anteriormente, estamos tratando de uma questão moral. Steven Pinker asseverou que "o cerne da moralidade é o reconhecimento de que os outros têm interesses tanto quanto nós temos [...] e, portanto, que têm direito à vida, liberdade e busca de seus interesses" (p. 308).(1) Mas quem são esses outros? Nossa família e colegas de trabalho ou toda pessoa e até mesmo nossos cachorros? Pinker sintetizou algumas ideias do filósofo Peter Singer no seguinte comentário: "As pessoas expandiram constantemente a linha pontilhada [...] que abrange as entidades consideradas dignas de consideração moral. O círculo foi sendo ampliado, da família e da aldeia para o clã, a tribo, o país, a raça e, mais recentemente (como na Declaração Universal dos Direitos Humanos), para toda a humanidade" (p. 233).

E não pára por aí. Muitos ativistas ampliaram o diâmetro moral para incluir zigotos, fetos, espécies, ecossistemas e, também em razão do aquecimento global, todo o planeta. Mas nem todos chegam a esse extremo. A maioria das pessoas pouco importa com a morte de vacas, galinhas e porcos que forram suas refeições diárias — tanto menos se preocupam com os vegetais. Talvez sejamos mais sensíveis a causas cujos efeitos toquem nossos interesses. "Os agentes beneficiam-se quando se agrupam e se especializam na busca de seus interesses comuns", concluíram os biólogos Maynard Smith e Szathmáry e o jornalista Robert Wright.(2) Pelo viés da evolução, cooperar não raro é uma estratégia mais vantajosa que ser egoísta e competir. Em termos do senso comum, queremos o bem de quem nos quer bem.

E há outros atravessamentos morais eminentes na trama do filme. Pinker aventou que uma percepção cosmopolita pode levar as pessoas a pensar: "Não fosse pelo destino, eu estaria no lugar dele" (p. 236). Ora, já sentimos na pele — através do virtualismo cinematográfico — o medo de sermos aniquilados por alienígenas. Independence Day e Guerra dos Mundos são exemplos de palco desse conflito. Colonizadores (isto é, exploradores) e irmãos recém-nascidos possivelmente abalam, respectivamente, o coração de índios e irmãos mais velhos. Os interesses e sentimentos dos Na´Vi são, enfim, totalmente compreensíveis e, talvez por isso, sensibilizantes.

Compreensíveis porque, e como descrevi anteriormente, seus hábitos e repertório emocional são similares aos nossos. Talvez seja esta a fórmula mágica da sensibilização: dar aos personagens — de filmes, novelas e teatro — atributos da nossa própria natureza. Mickey Mouse, Pica-Pau e Bender, personagens não-humanos de desenhos animados, tocam-nos em parte por esse motivo. Exceto biólogos e fãs do Animal Planet, pouca gente investe tempo observando a rotina de formigas e pernilongos. Pois temas como amor, poder e status, superação, conflitos inter e intrafamiliares, paixão e adultério, religiosidade e excitantes explorações marítimas, florestais e intergalácticas excitam-nos bem mais — porquanto desdobram-se da nossa natureza. E definitivamente não é por acaso que nossas tramas novelescas, cinematográficas e teatrais giram em torno disso.

Considerações finais

A situação e dilemas críticos dos Na´Vi, aliados à apaixonante incursão cultural de Jake e, em contraste, às investidas insensíveis dos missionários intergalácticos, tornaram-nos mais empáticos e simpáticos aos primeiros do que aos segundos. Mais que isso, AVATAR tem levado milhões de pessoas a (durante o filme) expandir suas fronteiras morais e a se posicionar contra nossos "irmãos-de-espécie". Se fomos programados (isto é, se evoluímos) para amar e cooperar com nossos semelhantes, também o fomos para punir e desprezar trapaceiros, aproveitadores e exploradores perversos. Com efeito, AVATAR proporciona, entre outras coisas, um espetáculo tridimensional de paradoxos morais.


Referências

(1) Pinker, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
(2) Maynard Smith & Szathmáry, 1997; Wright, 2000.

3 comentários:

  1. Não poderia deixar de fazer um comentário, afinal um texto assim merece um feedback. É verdade que a maioria das pessoas esteve e está interessada em ver Avatar mais bem por causa da superprodução que acabou sendo e por ser trabalho de um diretor de grande curriculum, James Cameron (Titanic e a franquia O Exterminador do Futuro). É raro encontrar uma coisa mais plus ultra (mais além), que foge um pouco a essa atmosfera. Por isso, achei interessante a sua abordagem sobre a moral considerando a trama do filme. De fato a questão moral tem um pouco de "egoísta", porque parece ser que é preciso entender que determinados seres tenham "fins", "comportamentos" e necessidades similares às nossas para que pensemos bem antes de tirar-lhes a vida, seja para a manutenção da nossa ou para qualquer outro fim. E se o nosso senso de moral tende a possui uma envergadura cada vez maior fico pensando que conflitos isso poderia gerar para a humanidade nos próximos séculos. Até hoje, nenhum filme (talvez, com uma visão apocalíptica de futuro) tratou com exclusividade deste tema. Parabéns pelo texto, Daniel. Abraços.

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  2. Excelente texto, Daniel, como era de se esperar por ser algo seu.

    Discordo, no entanto, que os laços mais fortes sejam os consanguíneos. Depois discutiremos isso.

    Abraços.

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