sábado, 10 de abril de 2010

Punição, Política Dissuasiva e Moralidade

Em um dos episódios de Futurama, animação estadunidense do mesmo criador de Os Simpsons, a capitã da espaçonave Planet Express se depara com uma fonte de petiscos deliciosos (similares a baconzitos rechonchudos) em um planeta longínquo. Com a ajuda de seus amigos, Bender e Fry, Leela carrega seu veículo interestelar com essa guloseima e começa a comercializá-la na Terra. Os negócios andavam bem até que os líderes de uma espécie alienígena, furiosos em razão do sequestro e dizimação de sua prole, vieram à Terra a fim de fazer justiça. A guloseima exótica, que vinha conquistando o paladar de milhões de terráqueos, era na verdade pequeninos e quase inexpressivos bebês extraterrestres. Nossa capitã, principal responsável pela exportação das criaturinhas, seria, em rede nacional, devorada pelos justiceiros.


Punir ou não punir? — eis a questão. Um dos psicólogos mais eminentes do século passado, Skinner (1983) asseverou que “a punição destina-se a eliminar comportamentos inadequados, ameaçadores ou […] indesejáveis, com base no princípio de que quem é punido apresenta menor possibilidade de repetir seu comportamento”.(1, 2) Há casos, no entanto, e tal como foi ilustrado anteriormente, em que a punição chega ao extremo de eliminar toda e qualquer forma de expressão do infrator (matando-o). Embora haja quem se oponha a essa espécie de condenação, há também quem a defenda em razão de um de seus efeitos indiretos: desestimular outras pessoas de cometer infrações. Como aprendemos, além de por nossas experiências diretas (modelagem), também pela observação (modelação), e como somos indivíduos sociais e cognitivamente capazes de seguir regras (outro fio condutor do comportamento), o fenômeno chamado “política dissuasiva” desponta naturalmente como uma das vértebras de nossa coluna moral.

A política de dissuasão

A “política de dissuasão”, como alguns teóricos a denominam, pode ser vista como uma estratégia reguladora de comportamento cuja função é dissuadir ou desencorajar infratores potenciais. Como punir é comumente uma tarefa custosa e às vezes produz colaterais danosos,(3) pessoas e instituições lançam mão da política dissuasiva. Um exemplo de dissuasão é garantir que multas ou prisões sejam aplicadas a cidadãos emissores de condutas socialmente indesejáveis (convenhamos, penalidades nada extremistas se comparadas ao assassinato legal). As religiões, que também adotam medidas dissuasivas, geralmente apregoam severas punições pos mortem. Em se tratando do cristianismo, por exemplo, pagar as contas no purgatório e torrar perenemente no fogo do inferno são as mais populares e temidas. Mas a política de dissuasão permeia também nosso cotidiano. Ameaças de castigo e agressão são topografias comportamentais típicas dos pais, e alusões de negligência e separação são tentativas de endireitar a conduta do cônjuge (e há quem diga que o ciúme evoluiu “para”, entre outras coisas, nos amparar nesse quesito).

Sabemos, contudo, que há falhas na política dissuasiva. Por exemplo, a probabilidade de emitirmos comportamentos imorais/inadequados aumenta na medida em que os estímulos sinalizadores da punição se ausentam.(1) Furamos o sinal vermelho e somos infiéis bem mais quando sermos flagrados se faz improvável. Voltando ao caso Futurama, para que o propósito dos reis extraterrestres fosse eficazmente conquistado, qual seja, dissuadir as pessoas de comer seus filhotes, apenas promover o “Show do Banquete” não bastaria (tal como não basta televisionar a condenação do casal Nardoni para dissuadir atos de crueldade na relação pais-filho). Se seus ninhos não estiverem protegidos e se sua astúcia em detectar os gulosos for falha, tanto maior será a chance de sua prole cair em mãos — e bocas — erradas.

Uma amiga jurista, a respeito das falhas do sistema penal, asseverou que uma parcela mínima dos criminosos é presa. Quando são detidos, ainda, apenas a minoria vai para o xadrez. E não é por acaso que os presidiários são, em maioria, pobres. Os ricos, complementou, têm bons advogados e se esquivam sagazmente da fiscalização — e por isso não são desencorajados pelas punições previstas na legislação. A conclusão, em termos do senso comum, parece a seguinte: se eu posso te empurrar na lama sem que você me empurre outrora, ser egoísta e imoral se me faz desejável.

Por outro lado, praticamente ninguém é ininterrupta e incondicionalmente imoral. A não ser as pessoas com transtorno de personalidade antissocial (os psicopatas) — as quais “fracassam em conformar-se às normas sociais com relação a comportamentos legais” —,(4) somos adequadamente afetados pela punição, sentimos culpa e embaraço e, com efeito, geralmente julgamos que os fins não justificam os meios. Ao lado disso, não são poucas nossas razões para sermos solidários, cooperativos e conformantes aos princípios morais. Sem isso decerto não teríamos pisado na Lua, levantado cidades ou tecido redes virtuais de comunicação. Sermos empáticos, amáveis e corteses também caracterizam condutas cujos efeitos são, em diversos contextos, bilateralmente benéficos. A base da moralidade, concluo, não se restringe aos princípios da política dissuasiva (embora dela dependa enormemente).

Pouco antes de concluir, devo citar o que parece caracterizar a eficácia das políticas dissuasivas: 1) a eficiência na detecção de infratores e 2) a aplicação infalível e apropriada de penalidades. Há um esboço de como um sistema munido desses mecanismos poderia funcionar apresentado no texto Olho por Olho do psicólogo e game designer Alessandro Vieira. Receio, no entanto, que aprimorar nossos instrumentos reguladores a tal patamar é, ao menos atualmente, inviável. Em paralelo, não estou certo se meios eficientes de gratificar e alardear condutas socialmente desejáveis poderiam ser elaborados, incentivados e mesmo implementados pelo governo. Como aludi anteriormente, mais que ameaçar, fiscalizar e punir acertadamente, desenvolver e reforçar condutas, valores e ideais apropriados é tanto e talvez até mais imprescindível quando queremos promover "homeostasia moral".

Da condenação de Leela

Leela merecia ser comida pelos alienígenas? Sabemos, pelo viés da Psicologia Existencial, que da liberdade irrompe a responsabilidade. Mas se por um lado o caminhão de petiscos embarcou rumo à Terra — e à morte — devido às deliberações da capitã, por outro lado não lhe passou pela cabeça o fato de que havia vida pulsando em suas entranhas (dos petiscos). Seu crime não fora premeditado e sua luta contra a comercialização do produto, mais adiante, revelou sua veia altruísta e incomumente materna. Por sorte, e como não estamos tratando de South Park, nossa protagonista esquivara-se do seu trágico destino.(4) Os alienígenas grosseiros, em contrapartida, acabaram revelando ao mundo que o cumprimento de suas ameaças é falho e impreciso. A regra “Se-comer-será-comido”, com efeito, provavelmente não controlaria eficientemente o comportamento dos terráqueos.


Notas e referências

(1) Skinner, 1983, citado em MOREIRA e MEDEIROS, 2007.
(2) Meus agradecimentos pela fonte e revisão ao embrionário e dedicado analista do comportamento Neto, autor do Blog "Comporte-se".
(3) Pinker, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
(4) American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4. ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 1994.
(5) Apesar de Leela ter sido poupada, um outro ativista foi degolado pelo alienígena.

Um comentário:

  1. Muito bom!
    E pensar que o desenho foi a fagulha para disseminar esta micelania de ideias.
    Gostei!

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