sexta-feira, 30 de abril de 2010

Um pouco abaixo da consciência

Ontem à noite, logo quando me deitei para dormir, versos de "Day Tripper", uma canção dos Beatles, começaram a invadir meus pensamentos. Não havia, pelo que notei, qualquer estímulo discriminativo (como uma foto dos Beatles ou meu violão) nas proximidades capaz de engatilhar a balada. Minha melhor hipótese, fundamentada em teorias e estudos de que tratarei adiante, é a de que aqueles versos já estavam, silenciosamente, sendo cantados por mim -- e sem que eu me desse conta disso.


Sabemos que o cérebro não pára: seu funcionamento é incessante e dividido em departamentos e níveis de processamento distintos. Enquanto estamos ocupados em tarefas simples como ler, ouvir música ou dormir, cálculos e computações imperceptíveis são gerados pela atividade dos neurônios, as células básicas que o constituem. O conteúdo mental a que temos acesso ou consciência é, como sugerira Freud, apenas a pontinha de um imenso e intricado iceberg. Um pouco abaixo do escopo da consciência, pode-se dizer que emoções, ensaios motores e versos são silenciosa, paralela e constantemente gerados. 

Sono, memória e processamento inconsciente

Nos últimos anos, diversos estudos sobre a relação entre sono (sobretudo o sono REM) e aprendizagem foram realizados. Em suma, propõe-se que enquanto dormimos o cérebro se encarrega de repetir e organizar (ou sintetizar) o que aprendemos recentemente. Essas repetições, que durante os sonhos comumente estariam "camufladas", possuiriam a função de consolidar a aprendizagem (Bear, Connors & Paradiso, 2002).

Estudos sobre os mecanismos moleculares da memória parecem corroborar essa hipótese. Não apenas durante o sono, um tipo de modulação sináptica, a potenciação de longa duração (LTP, do inglês long-term potentiation), empenha-se em efetivar o registro (ou a memorização) de novos acontecimentos ou procedimentos executados. Em se tratando do nível de análise comportamental, essa modulação mostra-se decisiva para a promoção dos condicionamentos clássico e instrumental (Loginver, 2010). A LTP aumenta por horas, dias ou meses a eficácia de sinapses estimuladas (Bear, Connors & Paradiso, 2002). Tal como precisamos chutar bolas inúmeras vezes ao gol para que nossa apontaria melhore, nossos neurônios precisam disparar incontáveis vezes para que novas habilidades ou informações sejam consolidadas -- mesmo que não o percebamos. Além de prolongar a atividade de neurônios específicos, a LTP eleva também a frequência de seus disparos (efetivando mais ainda suas sinapses). Veja abaixo um vídeo ilustrativo da LTP.


É possível que LTPs estejam sendo geradas em seu cérebro neste momento. Destarte, quando posteriormente você se ocupar com outros afazeres, essas potenciações permanecerão, silenciosa e persistentemente, em execução. Esse processamento inconsciente poderá, na melhor das hipóteses, registrar em suas redes neurais informações consistentes a respeito da LTP (conteúdo ao qual você está exposto agora). Não é curiosa a ideia de que só efetivamente aprendemos algo sobre LTPs na medida em que entram em ação, em nossos circuitos, LTPs? Dependendo do quanto este assunto lhe despertou interesse, é teoricamente possível que seus pensamentos sejam de alguma forma afetados por essas potenciações recentemente geradas (mas talvez não tanto quanto seriam caso estas tratassem de consolidar versos melódicos).

Renovando o repertório

Ontem à tarde, horas antes de eu me deitar, dediquei alguns bons minutos tentando tocar e cantar "Day Tripper". Com efeito, esse treinamento possivelmente ativou o tipo de modulação sináptica denominado LTP, através do qual encadeamentos neurais específicos continuaram disparando no decorrer do dia -- e decerto também durante meu sono. Ouso extrapolar, outrossim, que essa atividade neural, em razão da não-competição (ou de uma baixa competição) com estímulos circundantes (oriundos do ambiente exterior), conquistou, pouco antes de eu dormir, acesso ao nível de processamento que constitui a experiência consciente. Essa linha de eventos, enfim, abriu uma janela cuja vista, os versos de uma bela canção, repousava há horas no meu inconsciente.

Considerações finais

Não estou certo do quanto e de como a LTP afeta comportamento e pensamento corriqueiros. No entanto, no mínimo posso inferir que o inconsciente não é, como gostaria Freud, constituído sobretudo de fantasias sexuais. É possível que boa parte do processamento imerso nas águas profundas da cognição diga respeito à consolidação mnemônica, bem como que esta, realizada via LTP (mas não só), interfira no curso do pensamento e do comportamento. Por exemplo, não estaria a potenciação de longa duração relacionada à reprodução involuntária de "músicas-que-não-saem-da-cabeça"? A propósito, não poderia a potenciação de longa duração desencadear comportamentos na ausência de estímulos discriminativos? Se não, não estaria a LTP ao menos afetando a probabilidade de que certos comportamentos sejam emitidos? Em se tratando do viés psicanalítico, a interpretação de sonhos e de fenômenos como o ato falho poderiam ganhar rumos alternativos (não necessariamente substitutivos). No entanto, resta saber se há abertura na teoria psicanalítica para que hipóteses biológicas afetem a forma como é vista a dinâmica do inconsciente.

Espero em breve ter em mãos respostas para algumas dessas perguntas.


Referências

  • Bear, M. F, Connors, B. W, & Paradiso, M. A. (2002). Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed.
  • Lovinger, D. M. (2010). Neurotransmitter roles in synaptic modulation, plasticity and learning in the dorsal striatum. Neuropharmacology, 58, 951-961.

5 comentários:

  1. "A propósito, e behavioristicamente indagando, não poderia a potenciação de longa duração desencadear comportamentos na ausência de estímulos discriminativos?"
    .
    Sem Sd's publicos, você fala? Bom, para que a lembrança ocorresse, não era necessário que o Sd fosse necessariamente público. Ela pode ter sido evocada por um evento privado, o qual pode fazer parte de uma cadeira de eventos privados que tem, á sua ponta, um estímulo público... enfim, é uma resposta difícil de se chegar.

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  2. Sim, Neto, é possível que eventos privados nos tragam certas lembranças. Mas nesse tipo de caso parece diferente. Agora, por exemplo, carros passando e buzinando na avenida enchem meus ouvidos de barulho. Supondo que a lâmpada do meu quarto emita um ruído baixinho, eu só o conseguiria ouvir caso a rua ficasse deserta, silenciosa. Da mesma forma, desconfio que o mecanismo de LTP produz "eventos silenciosos" (como os versos de "Day Tripper"), eventos estes que, na ausência de estímulos competitivos (conversas, buzinas e música), podem ganhar acesso à consciência. Estímulos discriminativos poderiam facilmente trazê-los para o primeiro plano perceptivo, mas acho que há casos, como no descrito em meu texto, em que isso se faz prescindível.

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  3. Muito interessante o texto Daniel !
    Acho muito interessante essa hipótese, mas fiquei com algumas dúvidas.
    Quando você escreve:

    "Por exemplo, não estaria a potenciação de longa duração relacionada à reprodução involuntária de "músicas-que-não-saem-da-cabeça"?"

    Sobre as "músicas-que-não-saem-da-cabeça", nós ouvimos dezenas de músicas o dia inteiro, mas apenas algumas adquirem essa caracteristica (bem desconfortável algumas vezes).
    Porque de todos os acontecimentos do seu dia, foi logo a música do Beatles que surgiu durante seu sono ?
    Tem algo a ver com as propriedades sonoras da música, como ritmo, métrica, etc (hipótese explorada pelo O. Sacks em seu último livro)? Ou teria mais a ver com a relevância/importância que esse fato teve pra você durante o dia ?

    Se conseguissemos refinar a resposta pra essa pergunta, a hipótese ganharia ainda mais força!

    Abraços !!

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  4. Bom, Ramon, tenho notado nos últimos meses que as músicas que estou aprendendo a tocar e cantar aparecem com maior frequência nas situações supracitadas. Músicas que já estão adequadamente memorizadas surgem bem menos. Certamente dou mais importância às primeiras no sentido de que aprendê-las ainda me é uma tarefa, um desafio. As qualidades da música (tais como ritmo, métrica e tom) possivelmente também aparecem como variáveis intervenientes. Por outro lado, comumente toco diversas outras músicas (já aprendidas e geralmente agradáveis) no decorrer do dia. Não nego que todos esses fatores provavelmente têm relação com o fenômeno em questão, mas desconfio que a LTP, pelas razões que expus outrora, seja um processamento no mínimo razoavelmente influente sobre comportamento e cognição.

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  5. Muito bom texto, Daniel!! Acho essa idéia super interessante e promissora!! Quando tiver mais dados sobre isso me avise.

    Abraço!

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