Estamos cursando o segundo módulo da especialização em Neurociências pela UFMG. Com bem menos bioquímica, fisiologia e neuroanatomia, temos estudado as doenças do sistema nervoso sob uma perspectiva mais psiquiátrica, cognitivista e, é claro, psicopatológica. Muitos de nós temos achado esse segmento do curso mais leve -- sobretudo por haver menos termos e processos moleculares intricados para aprender. No entanto, e à medida que lançamos mão de psicologismos para descrever ou explicar doenças, as coisas vão ficando, como diriam alguns colegas, mais abstratas. Termos banais como personalidade, afeto e inteligência podem parecer residir em um universo totalmente à parte do sistema nervoso central. Não obstante os esforços de professores e colegas no sentido de arquitetar pontes entre esses mundos, alguns termos ainda nos escapam entre os dedos. Um deles, talvez o mais popular e abrangente, empacou por alguns minutos o fluxo da nossa última aula. "Afinal de contas, professor", interveio uma colega, "o que vem a ser a mente?"
Alguns teóricos sugerem que a mente é exatamente aquilo que o cérebro faz. Para ilustrar essa aproximação (ou melhor, essa identificação), iInumeráveis construtos psicológicos vêm sendo relacionados a padrões de sinalização neuroquímica (comunicação entre neurônios por meio de substâncias químicas, os neurotransmissores), a circuitos relativamente circunscritos e a modalidades específicas de conexão e disparos neuronais. Memória de trabalho, filtro atentivo, percepção, linguagem, inibição de impulsos e tomada de decisão são exemplos de construtos que têm sido incorporados e abordados pelas neurociências. Apesar de que ainda estejamos um pouco longe de explicá-los (os construtos) sistematicamente, não faltam evidências de que o que somos e como agimos e pensamos está intimamente ligado à atividade do encéfalo.
As Psicologias Comportamental e Cognitiva, talvez também por seu compromisso científico, dialogam satisfatoriamente com as neurociências. A perspectiva cognitivista, em especial, preconiza que o mundo mental pode ser alicerçado no mundo físico pelos conceitos de informação, computação e feedback, bem como que a mente é um sistema complexo composto de muitas partes que interagem (Pinker, 2004). Ao estudarmos os sistemas computacionais do encéfalo, estaríamos também estudando a mente. A título de exemplo, sabe-se que o córtex pré-frontal dorsolateral dá forma à memória de trabalho; que circuitos da amígdala e do córtex orbitofrontal computam informações emocionais; e que áreas sensitivas primárias dos lobos temporal e occipital processam, respectivamente, informações auditivas e visuais. Vale lembrar que essas áreas, como todas as demais, recebem e enviam informação de e para inúmeras outras, arquitetando redes amplas e complexas de computação.
Elaborei, pelas lentes cognitivistas, um esboço do que entendo pelo termo mente. Em uma só frase, mente designa o conjunto de sistemas especializados em traduzir e processar os sinais do corpo e do ambiente, tendo como função global e primordial garantir a funcionalidade, a adaptação de um organismo ao seu meio. Cabe ressaltar que animais não-humanos também possuem mente, mesmo que seus mecanismos constituintes variem de acordo com a espécie e, portanto, gerem cognições e comportamentos peculiares. Esses mecanismos, que estão assentados na filogênese, foram modelados pela seleção natural.(1)
Considerações finais
Aproximar a mente das computações encefálicas faz desdobrar questões inquietantes de cunho científico, filosófico e religioso. Por exemplo, aceitar que só há mente -- e consciência -- enquanto estamos vivos costuma suscitar revolta naqueles que creem em um propósito transcendental para a vida. Em se tratando da filosofia da mente, talvez jamais saibamos por que certos padrões de disparo -- ou conjuntos de neurônios -- configuram umas ou outras modalidades imagéticas (isto é, os qualia), tais como a vermelhidão do vermelho, a alegria ou o amargo do café.(2) Seja como for, pode ser que a materialização da mente -- em grande parte por via dos avanços da Neurociência -- reforce, saliente e transforme os paradigmas da Psicologia que são mais comprometidos com o método científico. Não obstante certos entraves epistemológicos, essa etapa pode marcar um novo caminho rumo à compreensão, previsão e controle do comportamento humano.
Notas
(1) Se considerarmos as ambições dos proponentes da inteligência artificial, logo teríamos de mudar a forma de pensar sobre o termo tratado.
(2) Não estou discutindo a origem dos mecanismos celulares que geram as imagens mentais (os quais foram modelados pela seleção natural); discuto a natureza e o mistério que envolve essas imagens -- o conteúdo da mente.
Referência
Alguns teóricos sugerem que a mente é exatamente aquilo que o cérebro faz. Para ilustrar essa aproximação (ou melhor, essa identificação), iInumeráveis construtos psicológicos vêm sendo relacionados a padrões de sinalização neuroquímica (comunicação entre neurônios por meio de substâncias químicas, os neurotransmissores), a circuitos relativamente circunscritos e a modalidades específicas de conexão e disparos neuronais. Memória de trabalho, filtro atentivo, percepção, linguagem, inibição de impulsos e tomada de decisão são exemplos de construtos que têm sido incorporados e abordados pelas neurociências. Apesar de que ainda estejamos um pouco longe de explicá-los (os construtos) sistematicamente, não faltam evidências de que o que somos e como agimos e pensamos está intimamente ligado à atividade do encéfalo.
As Psicologias Comportamental e Cognitiva, talvez também por seu compromisso científico, dialogam satisfatoriamente com as neurociências. A perspectiva cognitivista, em especial, preconiza que o mundo mental pode ser alicerçado no mundo físico pelos conceitos de informação, computação e feedback, bem como que a mente é um sistema complexo composto de muitas partes que interagem (Pinker, 2004). Ao estudarmos os sistemas computacionais do encéfalo, estaríamos também estudando a mente. A título de exemplo, sabe-se que o córtex pré-frontal dorsolateral dá forma à memória de trabalho; que circuitos da amígdala e do córtex orbitofrontal computam informações emocionais; e que áreas sensitivas primárias dos lobos temporal e occipital processam, respectivamente, informações auditivas e visuais. Vale lembrar que essas áreas, como todas as demais, recebem e enviam informação de e para inúmeras outras, arquitetando redes amplas e complexas de computação.
Elaborei, pelas lentes cognitivistas, um esboço do que entendo pelo termo mente. Em uma só frase, mente designa o conjunto de sistemas especializados em traduzir e processar os sinais do corpo e do ambiente, tendo como função global e primordial garantir a funcionalidade, a adaptação de um organismo ao seu meio. Cabe ressaltar que animais não-humanos também possuem mente, mesmo que seus mecanismos constituintes variem de acordo com a espécie e, portanto, gerem cognições e comportamentos peculiares. Esses mecanismos, que estão assentados na filogênese, foram modelados pela seleção natural.(1)
Considerações finais
Aproximar a mente das computações encefálicas faz desdobrar questões inquietantes de cunho científico, filosófico e religioso. Por exemplo, aceitar que só há mente -- e consciência -- enquanto estamos vivos costuma suscitar revolta naqueles que creem em um propósito transcendental para a vida. Em se tratando da filosofia da mente, talvez jamais saibamos por que certos padrões de disparo -- ou conjuntos de neurônios -- configuram umas ou outras modalidades imagéticas (isto é, os qualia), tais como a vermelhidão do vermelho, a alegria ou o amargo do café.(2) Seja como for, pode ser que a materialização da mente -- em grande parte por via dos avanços da Neurociência -- reforce, saliente e transforme os paradigmas da Psicologia que são mais comprometidos com o método científico. Não obstante certos entraves epistemológicos, essa etapa pode marcar um novo caminho rumo à compreensão, previsão e controle do comportamento humano.
Notas
(1) Se considerarmos as ambições dos proponentes da inteligência artificial, logo teríamos de mudar a forma de pensar sobre o termo tratado.
(2) Não estou discutindo a origem dos mecanismos celulares que geram as imagens mentais (os quais foram modelados pela seleção natural); discuto a natureza e o mistério que envolve essas imagens -- o conteúdo da mente.
Referência
- Pinker, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Como sempre, Daniel, texto excelente! Demorei um pouco pra conseguir tempo pra ler, mas estava aqui como prioridade de leitura.
ResponderExcluirVocê citou a perspectiva comportamental ao falar de mente. Creio que partindo de uma perspectiva comportamental, seja aceitável a idéia de mente enquanto o cérebro em funcionamento. Importante ressaltar, no entanto, que o cérebro é tratado não como um "iniciador" comportamental, mas como parte do organismo, parte esta que possui características selecionadas filogeneticamente e, a partir delas, em interação constante com o ambiente, modifica-se, modificando também o ambiente.
Estas modificações podem ser, por exemplo, alterações de redes neurais no aprendizado, ou qlqr outras. Não sendo, portanto,o cérebro um "iniciador" comportamental, a atividade cerebral seria como a mecânica do comportamento - isto é: explicando a atividade cerebral acontece, estaríamos explicando COMO o comportamento acontece.
Muito interessante sua perspectiva, Neto. Fiquei curioso, no entanto, sobre se você - talvez em nome da análise do comportamento - sugere a existência de um "iniciador" do comportamento.
ResponderExcluirIniciador? Em que sentido? Acho complicada a idéia porque o comportamento é uma relação contínua e initerrúpta entre o organismo e o ambiente. Ele é determinado por esta relação.
ResponderExcluirSe falarmos em iniciador, podemos falar no máximo de estímulo discriminativo, ou quem sabe Condicional.
Certa vez li que se quiséssemos encontrar o primeiro pontapé do comportamento, teríamos de viajar até o Big Bang. Gosto de pensar o organismo como um executor comportamental, um agente que se comporta na medida em que processa informações do ambiente e de si mesmo - o que de certa forma não foge das premissas da análise do comportamento.
ResponderExcluirDe toda forma, não sei exatamente qual é a questão do "iniciador comportamental". Se estamos falando de um organismo que se comporta, logo concluímos que seu comportamento (qualquer que seja) possui um início. Não vejo por que não dizer que o organismo é o iniciador do comportamento. Talvez o ponto da questão esteja no agente causador do comportamento. No entanto, parece que concordamos com a ideia de que todo comportamento ocorre na interação ambiente-organismo.
Qual seria o engano em se concluir que o organismo - ou o encéfalo - inicia seu comportamento (não propositadamente) na medida em que capta os estímulos ambientais? Creio que um grande problema seria tentar demarcar o início exato de um dado comportamento (talvez coubesse adotar a arbitrariedade). Fora isso, não me parece equivocada a ideia de que o organismo altera sua conformação em função das condições ambientais. Pensar dessa forma é no máximo centralizar a análise no agente comportamental, o que é diferente de negligenciar o papel do ambiente sobre o comportamento.
"Qual seria o engano em se concluir que o organismo - ou o encéfalo - inicia seu comportamento (não propositadamente) na medida em que capta os estímulos ambientais?"
ResponderExcluirO engano estaria na circularidade do raciocínio que obscurece a filogenia e ontogenia.Pensar que o organismo inicia o comportamento a partir de estímulos ambientais é problemático por duas razões.Uma que esquece que o comportamento só é iniciado a partir dos estímulos recebidos, logo então esses estímulos devem, por razões lógicas, ser parte da causa ou iniciador do comportamento e por outro lado esquece-se que houve toda uma história que deu origem ao dito comportamento e suas características.
abraços
Olá, Pedro. Obrigado pela participação.
ResponderExcluirO comportamento acontecer na medida em que o organismo capta/processa estímulos não me parece circular. Os estímulos (em termos de sua presença, por exemplo) podem ser vistos como - alguns dos - causadores, desencadeantes do comportamento, eu concordo. Ao mesmo tempo, também concordo que a ontogênese e a filogênese são determinantes.
Não vejo problema em afirmar que o organismo inicia seu comportamento no mesmo sentido que um carro, sendo dirigido por um ser humano, também inicia seu movimento. Repare que não estou explicando por que o comportamento ocorre, mas simplesmente descrevendo o comportamento de um organismo (ou carro). Se fôssemos traçar as variáveis determinantes, consideraríamos aspectos filogenéticos, genéticos, ontogenéticos e circunstanciais (ambientais). O ponto é que eu tomo o sistema encéfalo/mente como sendo o ponto de partida (ou referencial) para analisar o comportamento. Entre outras coisas, gosto da perspectiva cognitivista pela forma como ela vasculha a "caixa preta", como seja, desenvolvendo modelos compatíveis ao funcionamento encefálico. Como comentou o Neto, "a atividade cerebral seria como a mecânica do comportamento, [e por esta poderíamos explicar] COMO o comportamento acontece".
Abraço!
"Repare que não estou explicando por que o comportamento ocorre, mas simplesmente descrevendo o comportamento de um organismo (ou carro)."
ResponderExcluirIsso é plausível e nem vai contra a análise comportamental, mas acredito que a perspectiva cognitiva quebra o comportamento comportamentos encadeados e usa um elo para explicar todo o encadeamento comportamental.Aí está uma problemática do cognitivismo.Quanto a vasculhar a caixa preta, bem acho que nada na AC impede, o que ocorre é que, dado a comunidade AC de pesquisa tem uma limitação de pessoal e recursos, como toda linha ou ciência têm, não se pode pesquisar tudo, mas ainda tem coisas sobre neurociência e comportamento..
abração !