Os cientistas cognitivistas da religião têm alegado que a religiosidade é natural, isto é, que o conjunto de comportamentos que a caracteriza seria motivado por intuições psicológicas nucleares e naturalmente selecionadas (Bering, 2010). O ateísmo, e a irreligiosidade em geral, parece ser um problema para a chamada tese da naturalidade da religião (TNR). Barrett (2010): "Se a religiosidade é natural, o que explica a presença difundida do ateísmo e do agnosticismo, particularmente nos países europeus?" Temos, diante desse cenário, um impasse na concepção da postura religiosa (ateísmo, agnosticismo e teísmo) em termos de naturalidade.
A TNR traz a ideia de que recursos cognitivos normais ou comuns (ordinary) em ambientes humanos comuns levariam a alguns tipos de crenças em agentes sobrenaturais e, talvez, a outras ideias religiosas (Barrett, 2010). Recursos culturais "especiais" seriam desnecessários. Crenças sobrenaturais irromperiam tão facilmente quanto comportamentos como o andar e o se comunicar verbalmente. Em contraste, ateus amparados pelas ideias do etólogo Richard Dawkins preconizam que o comportamento religioso é meramente aprendido. Em seus livros O Gene Egoísta (1976) e Deus: um Delírio (2006), Dawkins assevera que a religião, tomada como um "vírus da mente", não é mais do que um conjunto de crenças e valores transmitido de pais para filhos (Geertz e Markússon, 2010). Nenhuma criança, portanto, nasceria religiosa, e a doutrinação poderia ser vista como um "estupro intelectual" (Dawkins, 2006). Isso fundamenta a hipótese da não-naturalidade (HNN).
Justin Barrett, psicólogo cognitivista, objeta a HNN: "A tendência de as pessoas se tornarem religiosas não é adequadamente explicada pelo fato de essas pessoas nascerem dentro de culturas religiosas. Religião não explica religião [ou cultura não explica cultura]". Se as pessoas em quaisquer sociedades tendem a se tornar religiosas, e a essa prevalência chamamos traço cultural, o que é que explica essa tendência -- ou esse traço cultural? Barrett, sob uma roupagem evolucionista, sugere que a religiosidade é fundada sobre três tipos de intuições naturais: um mecanismo de detecção de agentes (MDA), o realismo moral e o dualismo.
A função do MDA é detectar agentes, como pessoas e animais, mesmo quando em circunstâncias duvidosas. O nível de sensibilidade desse mecanismo varia dependendo do nível de "urgência-de-sobreviência" em um contexto. Acontece que essas detecções são eventualmente ambíguas em relação ao tipo de agente ou evento detectado. Ao ouvirem ruídos aparentemente advindos do armário, crianças poderiam passar a acreditar em monstros-de-armário. Vultos e barulhos estranhos, quando não condizentes com a presença de pessoas, poderiam sugerir a presença de agentes sobrenaturais. Se uma detecção se encaixa com o sinal típico de um agente sobrenatural pré-postulado, a crença nesse agente é reforçada (por exemplo, a casa realmente está assombrada). Supondo que a detecção de agentes-que-parecem-não-naturais ocorra ocasionalmente, o sobrenaturalista (supernaturalist) pode rotular cada evento como sendo uma evidência da existência de deuses ou espíritos. O naturalista (cético), mesmo que sensível a essas situações, teria formas distintas de interpretá-las: "Sim, parece que tinha alguém ali... mas sei que isso é impossível" ou, ainda, "Aquilo não era um agente real, mas a reação do meu MDA a eventos estranhos, ambíguos".
Acerca do realismo moral, Barrett comenta que acreditar em deuses reforça certas intuições morais que as pessoas têm. Uma dessas intuições é a de que algumas coisas são simplesmente certas ou erradas. Seríamos, dessa forma, realistas morais: acreditamos na existência absoluta e imutável de valores. Se cremos, por exemplo, que Deus criou tudo quanto existe (inclusive o bem e o mal) e que nós, parte de Sua criação, somos parecidos (inclusive ao raciocinar moralmente) com Ele, tendemos a aceitar, sem hesitação, o realismo moral. Nesse domínio, ateus devem ter uma ideologia alternativa -- um corpo sistemático de conceitos e relações -- para dar suporte a seus posicionamentos morais. Com efeito, desenvolver ideologias é mais custoso e, portanto, "menos natural" do que simplesmente dizer "Deus disse que aquilo é errado".
Bloom (2004), citado por Barrett, sugere que a organização cognitiva comum (ordinary) incita a intuição sobre a dualidade mente-corpo, derivando disso a naturalidade da crença em uma alma perene, imortal. A perda de um ente querido, que é frequentemente acompanhada por pensamentos e sensações de que este continua presente, figuraria como uma das condições que favorecem o pensamento dualista. Nesse caso, naturalistas (monistas) poderiam se deparar com mais empecilhos ao tentar resolver conflitos como esse.
Ao postular essas intuições, Barrett conclui que o teísmo é mais natural do que o ateísmo. De forma geral, o ateu deveria ser amparado por condições culturais especiais capazes de derrubar essas tendências naturais. Barrett sugere que "essa relativa não-naturalidade [do ateísmo] pode ser uma razão por que alguns estudos encontram uma relação entre ateísmo, educação formal e inteligência. Recursos cognitivos especiais ou instituições especiais (tal como instituições de educação formal) devem auxiliar a manutenção do ateísmo". Nessa linha de raciocínio, Geertz e Markússon (2010) asseveram que "o hábito do ateísmo deve requerer mais andaimes [isto é, auxílio cultural] para ser adquirido, e a religião, em contrapartida, deve requerer mais esforço para ser [descartada]". O critério seria: "Quanto mais aprendizagem, tanto menos naturalidade".
Contudo, em um discutido artigo publicado no periódico Religion, Geertz e Markússon (2010) mostram-se mais ponderados: o ateísmo seria tão natural quanto o teísmo. O fato de ser desenvolvido e suportado por certos artifícios culturais, sobretudo característicos das sociedades contemporâneas, não faria do ateísmo menos natural do que o teísmo. Vejamos:
Em última análise, a implicação da hipótese da naturalidade [TNR] é probabilística: a religiosidade é provável mas não é necessária (e certamente não é uma necessidade existencial, de vez que [seus mecanismos cognitivos subjacentes] não foram selecionados para a religiosidade, mas para a navegação mundana) e, como [vimos observando], o ateísmo é menos provável mas certamente possível, dadas certas condições ambientais e culturais.
Nesses termos, teríamos um problema de probabilidade. A naturalidade do comportamento religioso não é vista como algo biologicamente determinado (Bering, 2010). Longe disso, a "religiosidade [tal como o ateísmo] é uma propriedade emergente surgida da interação de mecanismos cognitivos normais com os ambientes social e natural imediatos" (Geertz & Markússon, 2010). Na verdade, mesmo comportamentos reflexos, assaz elementares (para não dizer "naturais"), dependem de certas condições ambientais para que sejam eliciados. Por exemplo, a dilatação da pupila, o respirar e o estiramento patelar dependem, respectivamente, de luminosidade, de oxigênio e de percussão sobre o tendão patelar. Acontece que, via de regra, a aquisição de comportamentos mais complexos depende de interações organismo-ambiente mais complexas, sendo que certas interações podem ser mais ou menos prováveis do que outras.
Mesmo que a TNR possa ser amparada pelas intuições supostas por Barrett, comportamentos como o ceticismo poderiam ser explicados por mecanismos naturais alternativos. Nesse sentido, não haveria nada que pudéssemos fazer que não fosse sustentado por nossas disposições inatas -- "todo comportamento humano é igualmente natural". Geertz e Markússon: "Os contextos políticos e culturais funcionam de forma a dar suporte à cognição ateísta -- tal como o fazem para a cognição religiosa. [...] O ateísmo não é menos natural do que a religiosidade". Contudo, Jesse Bering (2010), pesquisador cognitivista comentado criticamente por Geertz e Markússon, tratou de tecer uma tréplica: "[...] A crença religiosa, embora não seja [geneticamente] determinada, ainda é um fenômeno altamente probabilístico [...] e esse probabilismo captura [sua] naturalidade" (destaque meu). E o que diríamos se, daqui há alguns séculos, a maior parte da população for atéia? Estaríamos, através de dados estatísticos, capturando a naturalidade do ateísmo?
Ponto de reflexão
[...] Categorias bem conhecidas de comportamento -- costumes matrimoniais, tabus relacionados a alimentos, superstições populares etc. -- certamente variam entre as culturas e têm de ser aprendidas, mas os mecanismos mais profundos de computação mental que as geram talvez sejam universais e inatos (Pinker, 2004, p. 65, destaque meu).
A TNR é derivada de proposições como essa, que caracterizam a Psicologia Evolucionista. O comportamento religioso, longe de ter seus mecanismos exclusivos, teria suas raízes na interação cooptada de intuições básicas (Bering, 2010). Da mesma forma, o ateísmo poderia ser visto como um conjunto de comportamentos caracterizado pela atividade de certos mecanismos elementares cooptados. Embora pareça haver consenso a respeito dessa ideia (ao menos em se tratando dos cientistas cognitivistas da religião), pessoas como Barrett e Bering tomam o termo "naturalidade" como denotando a facilidade com que certos comportamentos são adquiridos -- possivelmente por terem sido adaptativos e, direta ou indiretamente, selecionados. Pessoas como Markússon e Geertz, no entanto, argumentam que o fato de o ateísmo requerer condições especiais para aflorar não o faz menos natural. Ademais, pensar crítica e cientificamente e se instruir a partir de instituições formais seriam atividades fundadas em mecanismos igualmente naturais -- sem dizer que figuram como comportamentos deveras adaptativos. Se mecanismos como os postulados por Barrett realmente existirem, Markússon e Geertz poderiam invocar Pinker (2004): "[...] um impulso ou hábito proveniente de um módulo pode ser traduzido em comportamento de diferentes modos -- ou ser totalmente suprimido -- por algum outro módulo [p. ex., o módulo ou mecanismo do pensamento crítico]" (p. 66, destaque meu).
Sem querer dar crédito especial a nenhuma das duas alternativas -- que, aliás, soam-me mais como complementares do que como contraditórias --, fecharei este texto com uma passagem digna de reflexão:
Hoje em dia é totalmente equivocado indagar se os humanos são flexíveis ou programados, se o comportamento é universal ou varia entre as culturas, se os atos são aprendidos ou inatos, se somos essencialmente bons ou essencialmente maus. Os humanos comportam-se de maneira flexível porque são programados: suas mentes são dotadas de software combinatório capaz de gerar um conjunto ilimitado de pensamentos e comportamentos. O comportamento pode variar entre as culturas, mas a estrutura dos programas mentais que geram o comportamento não precisa variar. O comportamento inteligente é aprendido com êxito porque temos sistemas inatos que se incumbem do aprendizado (Pinker, 2004, p. 67).
Referências
- Barrett, J. (2010). The relative unnaturalness of atheism: On why Geertz and Markusson are both right and wrong. Religion, 40(3), 169-172.
- Bering, J. (2010). Atheism is only skin deep: Geertz and Markusson rely mistakenly on sociodemographic data as meaningful indicators of underlying cognition. Religion, 40(3), 166-168. Elsevier Ltd.
- Bloom, P., 2004. Descartes’ Baby: How Child Development Explains What Makes Us Human. William Heinemann, London. Em: Barrett, J. (2010). The relative unnaturalness of atheism: On why Geertz and Markusson are both right and wrong. Religion, 40(3), 169-172.
- Dawkins, R. (2006). The God Delusion. Bantam Press, London.
- Geertz, A. W., & Markússon, G. I. (2010). Religion is natural, atheism is not: On why everybody is both right and wrong Religion DOI: 10.1016/j.religion.2009.11.003
- Pinker, S. (2004). Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras.
O que é natural não é o teísmo, mas a busca por explicações. Em estágios tecnologicamente primitivos, na falta de explicação melhor, se diz: "Foi obra de deus" (ou de deuses, ou de qualquer coisa sobrenatural). Quanto mais primitiva a cultura, maior o número de causas atribuídas ao sobrenatural. Até mesmo o ar e a água já foram, em algum momento, algo sobrenatural.
ResponderExcluirUma experiência muito interessante que acho que nunca foi feita é a de criar uma comunidade livre de superstições, nas quais as crianças aprendam as explicações científicas para os problemas e fenômenos que encontram, sem dogmas, podendo utilizar do método científico para buscar novas explicações. E na qual os preceitos morais e éticos fossem discutidos filosoficamente (acredito eu que preferencialmente dentro da filosofia analítica formal, aquela que - de modo geral - não é ensinada nem difundida no Brasil).
Num contexto como esse, quando essas crianças chegassem a idade adulta, se lhes apresentassem a religião, lhes soaria tão absurdo quanto é para nós uma proposta de estudar cientificamente o comportamento do coelhinho da páscoa. :D
Skinner diria que mais elementar ou natural ainda é a disposição para a aprendizagem. Em seu "Sobre o Behaviorismo" (1974/2006): "Num sentido importante todo comportamento é herdado, uma vez que o organismo que se comporta é produto da seleção natural. O condicionamento operante faz parte da dotação genética tanto quanto a digestão ou a gestação. [A espécie humana] começa por ser e continua a ser um sistema biológico [...]" (p. 41).
ResponderExcluirCláudio, que tal fundarmos uma comunidade desse tipo? Tenho outros colegas que também acham essa ideia atraente, rsrs...
Um abraço.
Entrei aqui pra dar uma lida nos seus ultimos posts. Lembrei de um tumblr que faz uma brincadeira com o tema:
ResponderExcluirhttp://ateismoepeitos.tumblr.com/
nao se ofenda, eu achei genial
Grande Mudado,
ResponderExcluirPrazer enorme por saber que passou por aqui -- sobretudo porque nos presenteou com um excelente tumblr.
Apareça mais. Abraços.
A Curiosidade é algo natural da nossa espécie, e para o bem ou para o mal, as vezes essa curiosidade precisa ser freada, como quando um pai diz ao filho Que quem brinca com fogo faz xixi na cama e essas coisas!
ResponderExcluirQuando não tinhamos conhecimentos para explicar os incríveis acontecimentos ao nosso redor, como raios e trovões por exemplo, para evitar o medo, a sociedade acabou "moldando" a realidade a sua imagem, antropoformizando os eventos, por exemplo, um grande pai celestial emfurecido com atitude do povo, solta o raio e o trovão na terra!
e claro que novas ideais vão surgindo com o tempo, novas explicaçãos e para controlar as massas, o medo passa ser incluido, e quando o medo de ficar de fora do céu, passa a não ser suficiente para controlar a massa, tem que se criar o inferno para criar ainda mais tormento na cabeça das pessoas...
As crianças tem uma grande curiosidade, mas tambem são autamente dependentes, por isso acabam confiando nos adultos, Papai noel e o exemplo perfeito do controle pelo medo, "Se você não for bonzinho, vai receber Carvão de natal" mas as crianças depois de um tempo percebem que isso não passa de uma besteira.
Está próxima a geração que crianças serão alimentadas apenas com a verdade, e que ser curioso não é uma coisa ruim, Por que não dizer que em vez de fazer xixi, a criança não pode acabar se machuando a si mesmo ou a outras pessoas? por que não icentivar a criança a investigar por si mesma, Se toda vez que a curiosidade de uma criança for convertida em conhecimento, pode ter certeza que essa criança não precisará de mitos ou viver com medo! mas sim, viverá feliz com as possibilidades!
Me perdoe se as minhas ideas estarem um pouco confusas, culpa da "manhã"
Maroja,
ResponderExcluirDeve haver uma ideia mais ou menos assim pairando sobre a cabeça dos pais:
"Quem ensinar a Criança a Duvidar
Nunca sairá da Cova fétida.
Quem respeita a fé da Criança
Triunfa sobre o Inferno & a Morte" (William Blake).
Deveria ser assim:
"Meus pais não eram cientistas. Não sabiam quase nada sobre ciência. Mas, ao me apresentar simultaneamente ao ceticismo e à admiração, me ensinaram as duas formas de pensar, de tão difícil convivência, centrais para o método científico" (Carl Sagan).
Um abraço.
É mais façio crér que do nada viemos para não se ter responsabilidades, por que de que adianta fazer tudo certo sabendo que no final não se dara em nada. Sem Deus não existe certo e erado seriamos como animais irracionais ou como muitos que já não cre em nada e sai pintando miseria no mundo. Deus é o nosso criador e nada do que vocês falarem ou fizerem podera mudar isto.responsabilidades, por que de que adianta fazer tudo certo sabendo que no final não se dara em nada. Sem Deus não existe certo e erado seriamos como animais irracionais ou como muitos que já não cre em nada e sai pintando miseria no mundo. Deus é o nosso criador e nada do que vocês falarem ou fizerem podera mudar isto.
ResponderExcluirAnônimo,
ResponderExcluirTemos evidências de que o "comportamento moral" independe do que preconizam doutrinas religiosas. As noções do bem e do mal estão enraizadas em nossas emoções, as quais se organizam conforme as interações que estabelecemos com a comunidade na qual nos desenvolvemos. Como há distintas organizações sociais, distintos códigos morais são estabelecidos. A similaridade do comportamento moral entre as culturas reflete a similaridade das tendências ou disposições comportamentais que herdamos dos nossos ancestrais -- as quais foram adaptativas e, portanto, favoreceram a sobrevivência e procriação. Para citar Nietzsche, e agora sendo mais restrito com as concepções, "Não há fatos morais, há interpretações morais dos fatos". Para citar uma de minhas recentes conclusões, o problema das religiões é que elas tentam tomar posse desses valores e crenças, ou daquilo que lhes parece ideal, e anunciá-los como sendo regras e verdades imutáveis e inquestionáveis.
Acredite: podemos ser responsáveis e morais independentemente da crença em Deus.
Um abraço.
tinha razão, Dani! Curti!
ResponderExcluirPARTE 1
ResponderExcluirFala, xará!
Passando aqui mais uma vez pra dar uma comentada, vou aproveitar pra pegar o gancho deixado pelo meu amigo Renato Maia (vulgo Renatão) nos comentários do post acima. Sim, existem muitas psicologias, mas, segundo minha opinião, poucas mereceriam este nome.
Eu acredito sim que diversas psicologias são possíveis, mas, para receberem a denominação 'psicologia', elas deveriam apresentar explicações psicológicas. Entretanto, o que vemos nas "psicologias" de hoje é que quase todas elas fundam suas explicações na biologia e nas influências culturais ou ambientais.
Falar em impulsos ou tendências “naturais”, e usá-las como fator explicativo, é a mesma coisa que não explicar nada. E, infelizmente, a psicologia está lotada de falsas explicações do tipo. Começando pela psicanálise, que funda suas teses em pulsões e instintos. “Instinto” é um mecanismo que foi instituído por natureza. A definição de ´pulsão’ não foge muito à regra. Assim, que valor explicativo possui uma teoria que define um comportamento como instintivo ou pulsional? Em termos lógicos, qual a diferença de se dizer que um comportamento é instituído por natureza ou de se dizer que ele foi atribuído aos homens por Deus? Não se explica NADA tanto de um jeito quanto do outro. Por que? Simplesmente porque TUDO poderia ser explicado dessa maneira. Quando a psicologia apela para explicações que utilizam a noção de ‘instinto’, ela está confessando que não tem realmente uma explicação PSICOLÓGICA para aquilo, assim como a ciência ainda não tinha explicações para tudo o que ela antes atribuía a Deus.
Entretanto, explicações que apelam para “genes” ou “fatores inatos” também caem no mesmo vazio explicativo. TUDO pode ser explicado afirmando-se que existe um “gene tal” que causa aquilo, ou então afirmando-se que existe em nós uma “tendência natural” para se seguir tal conduta. Nada disso tem valor explicativo. Mas, mesmo nos casos em que a ciência fornece, além da “explicação genética” uma descrição neurocientífica ou uma causalidade fundada, por exemplo, no evolucionismo, isso só se faz em detrimento da explicação psicológica em si.
Vou te dar um exemplo:
Quinta-feira passada, antes de nossa reunião começar, você conversava com o Tiago e dizia a ele que o evolucionismo tinha uma explicação para o surgimento da noção de dualismo mente-corpo. Você dizia que esta noção apresentava certo valor adaptativo.
Vamos admitir que esta explicação tenha validade. Vamos supor que, algum dia, existiu entre os homens indivíduos com diferentes noções acerca na relação mente-corpo, e que aqueles que eram dualistas se adaptaram melhor ao meio. Deixando de lado o INCRÍVEL fator especulativo de tal teoria, eu te pergunto: Qual o valor PSICOLÓGICO de uma teoria destas? Será que a explicação que ela fornece merece o nome de ‘psicológica’?
Eu tenho uma explicação diferente:
Eu acho que a noção de dualismo surgiu da própria percepção do homem sobre si mesmo. Todos nós temos um corpo sobre o qual controlamos apenas os músculos destinados ao movimento e a certas funções vitais. No mais, na nossa relação com ele nós nos portamos como se ele tivesse uma vida própria. Nossa vontade não consegue controlar os batimentos cardíacos, os movimentos peristálticos intestinais, não tem controle sobre as doenças que nos afligem, nem sobre estados como a fome e a sede. Nossa vontade controla apenas alguns movimentos e a direção do pensamento. Mas, ela também não consegue interromper o pensamento. O pensamento também tem movimento próprio, e o máximo que conseguimos fazer é dar uma direção a ele.
PARTE 2
ResponderExcluirAssim, é evidente que, na totalidade do nosso ser, distinguimos uma parte que está sob o controle da nossa vontade, e uma parte que tem “vida própria”. É à primeira destas partes que identificamos propriamente como nosso ‘eu’. Ela representa nosso “sujeito”, ou nossa subjetividade, enquanto a outra, o corpo com vida própria, funciona como um objeto para nós. Nossa subjetividade habita este corpo, mas ele é ESTRANHO ao controle e à vontade dela. E, na medida em que o corpo compreende todo o nosso ser físico e material, o que restaria ao sujeito senão estar confinado a uma realidade metafísica e imaterial?
Esta é a conclusão óbvia e lógica que todas as pessoas retiram da percepção de si mesmas, ainda que elas nunca tenham parado para pensar nisso mais detidamente. E, na verdade, elas nem conseguiriam fazer isso. Pois, logo cedo na vida elas também são formadas numa cultura que prega o dualismo, e aquilo que antes era uma noção individual formada na auto-percepção pessoal, confunde-se com a transmissão cultural. Mas, a cultura jamais teria se formado e jamais teria sido aceita e transmitida, se não houvesse, em cada indivíduo, uma intuição subjetiva que correspondesse a ela.
Esta sim é uma explicação psicológica. Ela pode ser refutada, complementada, modificada, mas ela é psicológica porque explica um fenômeno psicológico a partir de causas PSICOLÓGICAS.
E o interessante é que, a partir desta explicação do dualismo, podemos também chegar a uma explicação de Deus. Assim como o indivíduo forma a intuição de que o seu ser é formado por uma parte mecânica, material e objetiva, mas que ele próprio, enquanto sujeito, é algo recluso à invisibilidade e à imaterialidade, a noção que ele formará sobre o mundo também será uma projeção da noção que ele faz de si mesmo: O mundo também é mecânico, objetivo e material. Mas a VIDA é algo da ordem do invisível e imaterial. E assim como a parte invisível e imaterial que existe nele, indivíduo, corresponde exatamente ao que ele identifica como o SUJEITO do seu ser, a parte invisível e imaterial do mundo também será SUBJETIVA: Deus.
Este tipo de explicação mata dois coelhos com uma cajadada só:
- Ela explica porque as noções de dualismo e de Deus são assim tão “universais” (pois ela se funda na percepção de que a vontade consciente não controla todas as atividades do corpo, fato este que é universal);
- E ainda fornece uma explicação psicológica que não precisa de quaisquer elementos biológicos ou culturais para se tornar plausível.
E outras tantas explicações PSICOLÓGICAS sobre estes temas são possíveis. No meu blog mesmo você encontrou outra sobre Deus. (nogabinetedopsicólogo.blogspot.com)
Abraço, xará!
Daniel Grandinetti
Caro Grandinetti,
ResponderExcluirConcordo com você que algumas "explicações psicológicas" são vazias ou, na verdade, evolucionistas ou culturais. Você parece dizer que uma tese psicológica deve partir da ontogênese, e não da filogênese ou da cultura. Mas eu vejo que, afora as hipóteses "vazias", boa parte da Psicologia faz isso. Já trombei com Skinner comentando uma ou duas vezes que deveríamos nos debruçar sobre o nível intermediário de explicação, o ontogenético, e deixar os níveis filogenético e cultural para, respectivamente, a Biologia e a Antropologia.
Mas não podemos "deixar" esses níveis para outras disciplinas no sentido de não nos apoiarmos em suas teses para aperfeiçoar ou repensar as nossas e vice-versa. Por exemplo, o behaviorismo radical tem o condicionamento operante como sua jóia mais valiosa. Através desse processo -- e de alguns outros -- podemos explicar a aquisição e a modificação de uma miríade de comportamentos complexos SEM recorrer aos níveis de ponta. Isso faz da Análise do Comportamento (ou da Psicologia) uma disciplina independente.
Mas uma boa teoria, para se sustentar, precisa ser coerente para além do seu terreno. Se a susceptibilidade do organismo de se modificar a partir das consequências de seu comportamento é invariável entre toda cultura e em qualquer tempo, podemos supor que essa disposição é explicada por contingências evolucionistas. Aprender com as consequências seria uma disposição que beneficiou diversos organismos no passado, e aqueles que a apresentavam sobreviveram e tiveram mais descendentes.
Sobre o dualismo, devo esclarecer que imagino que essa perspectiva tenha sido apenas um "subproduto evolutivo". O dualismo não foi filogeneticamente selecionado; as disposições neurais elementares que o fundamentam, sim. Você citou o que pode ser uma delas: "a percepção do homem sobre si mesmo". Eu desconfio que o desenvolvimento do comportamento privado, como o imaginar e o sonhar, fomentem concepções dualistas. Mas é teoricamente possível explicar ontogeneticamente a origem do pensamento dualista. Há estudos com crianças que tentam mostrar o desenvolvimento dessa concepção (embora eu não os tenha lido ainda). O que o pessoal das linhas evolucionistas fazem é tentar demonstrar que ou explicar por que temos os recursos básicos que fundamentam nossos processos psicológicos/comportamentais.
No mais, gostei das suas hipóteses sobre o dualismo e Deus. Confesso que tenho ideias muito similares às suas. Vou chamar você pelo e-mail depois para podermos discutir uns projetos.
Abraços, xará. Valeu pela participação.
Daniel, parabéns pela beleza de artigo. Sou leigo no assunto e, me identificando ainda mais, sou ateu porque nasci numa família não-religiosa e me interessei mais por história do que por filosofia. Filosofia e teologia há muito andam de braços dados. A história aqui no Ocidente, desde o século IV é obrigada a favorecer ideologicamente a religião, mas, felizmente, sempre conseguiu dar seus “pulinhos”. A teoria animista nunca me convenceu porque antes dela eu preciso entender o porquê do crescimento explosivo do neocórtex em fase tardia da filogenia. Em sua evolução, pensamento abstrato não poderia prescindir de um novo cérebro bem desenvolvido. Somente com o Homo Sapiens veio isso acontecer e a natureza não dá saltos. O fechamento incompleto do crânio ao nascimento, as fontanelas, muito provavelmente representa uma acomodação imperfeita a essa recente evolução cerebral. (SAGAN, s/data, p. 85). A expulsão do Éden parece ser uma metáfora para alguns dos principais acontecimentos biológicos na evolução humana recente. Observa Carl Sagan em Os Dragões do Éden.
ResponderExcluirParece que a biologia e a história têm alguma afinidade e muita coisa a ser esclarecida. Ninguém sabe exatamente o que o judaísmo é. Einstein distinguia o deus cultural de Israel da possibilidade de uma inteligência cósmica. Nos primeiros séculos o deus de Israel era execrado como o malévolo criador da humanidade e rejeitado como o criador da vida e do universo. Naquela época a criação da vida se distinguia da criação do Homem e, por conseguinte, da criação do gênero Homo já existente. Foi somente depois que os fundadores do cristianismo resolveram reabilitar o deus de Israel, devido ao interesse que tinham pela posse do Velho Testamento, é que a atual idéia de “Deus” vingou. Diante disso, ser ateu é uma obrigação. Mas, voltando ao que mais nos interessa, hoje, somos o que somos por causa do neocórtex. Eu queria saber se já contamos com alguma explicação satisfatória quanto ao seu explosivo crescimento. Obrigado e parabéns, mais uma vez.
Ivani,
ResponderExcluirRealmente o pensamento abstrato não prescinde de um neocórtex que funcione como seu substrato. Imagino que não houve uma função/contingência de sobrevivência isolada que explicasse sua grande expansão, e sabe-se que há uma diversidade de funções envolvidas com essa camada (memória, flexibilidade, planejamento etc.). Desconfio que seja mais uma questão de aprimorar/expandir as capacidades que já possuíamos do que de servir de substrato para novas formas de comportamento/cognição. Mas precisarei fazer uma breve pesquisa de nível filogenético para que eu possa lhe trazer uma resposta mais satisfatória.
Obrigado pela participação. Um abraço.
Gratíssimo pela sua atenção e e interesse.
ResponderExcluirBloom (2004), citado por Barrett, sugere que a organização cognitiva comum (ordinary) incita a intuição sobre a dualidade mente-corpo, derivando disso a naturalidade da crença em uma alma perene, imortal. A perda de um ente querido, que é frequentemente acompanhada por pensamentos e sensações de que este continua presente, figuraria como uma das condições que favorecem o pensamento dualista. Nesse caso, naturalistas (monistas) poderiam se deparar com mais empecilhos ao tentar resolver conflitos como esse.
ResponderExcluirHá um problema aqui, visto que as religiões originais do Oriente Médio, as quais deram suporte para todas as outras religiões da região eurasiana, não defendiam a existência de almas imortais. O judaísmo inclusive era uma religião essencialmente materialista. A crença em uma alma imortal só surgiu com o contato com a civilização helênica. PAra mais esclarecimentos sugiro As Máscaras de Deus de Joseph Campbell e No começo Eram os Deuses de Jean Bottéro.
Desconheço essas informações. Vou procurar saber e rever aquelas ideias. Obrigado pelas dicas.
ResponderExcluirAbraço.