“O que é ser livre em um corpo formado por relações imutáveis, previsíveis e determinadas?”(1) Fábio Trad, jurista e deputado federal, levantou em uma matéria recente a questão de se o determinismo neurobiológico ameaça as bases do Direito Penal. Mais especificamente, Trad refletiu -- bem preocupado, devo dizer -- sobre se as explicações neurocientíficas para o comportamento humano são compatíveis com as noções de liberdade e responsabilidade.
O poder do indivíduo de escolher suas próprias ações é um conceito comum de liberdade pessoal ou livre-arbítrio. Disso decorre que toda ação do indivíduo é explicada por sua vontade, a qual não seria completamente determinada por eventos antecedentes. A vontade, tal como alguns dizem do espírito, não partilharia das relações de causa e efeito do mundo físico, material. Mas a noção de que a vontade é indeterminada -- ou apenas parcialmente determinada -- contraria o fundamento do determinismo. No campo do comportamento humano, a doutrina determinista preconiza que qualquer ação seria determinada ou causada por eventos antecedentes, quer sejam imediatos, como o contexto que circunda o indivíduo no momento de sua ação, quer sejam distantes, como os eventos que compõem sua história de vida. Sobre o embate liberdade-determinação, que então permeia a arena do Direito Penal, o cientista cognitivista Steven Pinker (2004) coloca o seguinte problema: “Se alguém tenta explicar um ato como efeito de alguma causa, está dizendo que o ato não foi escolhido livremente, e que o agente não pode ser responsabilizado” (p. 249).
Vejamos a seguinte e cômica ilustração do que seria uma explicação determinística de natureza histórica. Em uma charge publicada na revista New Yorker, uma mulher no banco de testemunhas declara: “É verdade: meu marido me espancava por causa de sua infância… Mas eu o matei por causa da minha!” (adaptado de Pinker, 2004). Essa trama retrata a tentativa da mulher de tirar sua responsabilidade pelo assassinato do marido. A culpa, na verdade, não seria dela, mas de tudo o que lhe ocorreu enquanto ainda era criança.
De forma análoga à supracitada, o deputado Trad pareceu-me sugerir que a neurociência, com base em suas explicações neurobiológicas, pode tirar do indivíduo sua responsabilidade por aquilo que faz. Tomando mais uma de suas indagações: “De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da neurociência no conceito de livre-arbítrio?”
Compreender é desculpar?
Poderia a neurociência justificar ou desculpar a criminalidade? Pinker (2004) comenta que um criminoso poderia ser defendido por via da alegação de que suas amígdalas (estruturas envolvidas no processamento emocional) são hipotrofiadas, que seu córtex pré-frontal (camada de corpos neurais associada, entre outras coisas, ao comportamento moral) é metabolicamente deficiente ou que seus genes são ineficientes em codificar a monoamina oxidase A (molécula que ajuda na reciclagem de neurotransmissores). Contudo, haveria uma contrapartida dessa postura:
Estão confundindo explicação com absolvição. Ao contrário do que insinuam os críticos das teorias das causas biológicas e ambientais, explicar um comportamento não é desculpar quem o executou (p. 250, destaque meu).
Pinker assevera que a responsabilização tem a função prática de dissuadir o comportamento prejudicial. Em outras palavras, responsabilizar -- através da punição -- produz o desencorajamento, ou melhor, a diminuição da probabilidade de o infrator voltar a se comportar de uma forma específica. Nesses termos, da mesma forma que, digamos, certos genes podem tornar os indivíduos mais propensos ao comportamento criminoso, podemos, enquanto reguladores sociais, atuar de forma a diminuir a frequência desse tipo de comportamento -- o que é socialmente interessante. Seria, por assim dizer, um cabo-de-guerra entre diferentes vetores determinísticos, podendo o encéfalo -- ou melhor, o comportamento -- ser modelado tanto para o “bem” como para o “mal”.
Diante disso, eis que temos uma resposta àquela pergunta do deputado Trad -- “De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da neurociência no conceito de livre-arbítrio?”. A resposta: independentemente do determinismo, punir é correto e aconselhável na medida em que não fazê-lo equivale a permitir que o infrator prossiga agindo de forma socialmente indesejável. Em termos técnicos, a punição, ou a responsabilização, tem o efeito de alterar as relações de causa e efeito nas quais está inserido o comportamento criminoso.(2)
A neurociência explica as nossas escolhas?
Venho estudando a velocidade de processamento de informação (VP) de idosos saudáveis. Em termos cognitivistas, VP refere-se à velocidade com que a cognição recebe, organiza e interpreta informações. Em termos do senso comum, VP denota a velocidade com que pensamos. Pelo nível neurofisiológico, VP diz respeito à velocidade com que os potenciais de ação são conduzidos ao longo das vias neurais. Pergunto: a descrição neurofisiológica da VP explica as descrições do senso comum e da psicologia cognitiva? A resposta, “não”, permite falarmos do que alguns filósofos denominam pluralismo descritivo: a possibilidade de descrevermos um mesmo fenômeno sob diferentes níveis de análise (Pinto, 2007). Por essa perspectiva, a linguagem neurocientífica não é muito mais do que uma forma alternativa de se olhar para certos fenômenos. Vejamos, para clarificar o conceito, como Pinker aborda a escolha sob os níveis descritivos da neurociência e da psicologia intuitiva:
Os eventos neurobiológicos, uma vez sendo identificados aos eventos psicológicos, não podem ser tomados como a causa destes últimos. Exemplo disso é o caso dos potenciais de ação, cuja velocidade não causa/determina a velocidade do pensamento -- ambas as descrições são, em vez disso, recortes diferentes de um mesmo fenômeno. Mas o que, afinal, determina se o cérebro "escolhe" um comportamento ou outro? A propósito, uma escolha específica determina um comportamento público específico?
Permitam-me ser breve, porquanto já abordei questões parecidas em outro lugar. Mesmo que eventos neurais precedam comportamentos motores (como quando um assassino planeja uma execução e, depois disso, a concretiza), a relação entre esses dois eventos só pode ser apropriadamente entendida à medida que trazemos ao palco a história de relações de uma pessoa (que possui genes específicos) com o seu ambiente. Em outros termos, devemos recorrer à filogênese e à ontogênese se quisermos explicar por que uma pessoa faz umas ou outras escolhas. Essas parecem ser as fontes, as origens de quaisquer comportamentos. Se isso ficar claro, entenderemos por que, em certas situações, as pessoas pensam, sentem e fazem o que fazem. Se o deputado Trad tiver que se preocupar com alguma coisa, esta coisa não é o sistema nervoso central -- tanto menos um homúnculo imaterial. Colocar a culpa no cérebro não é muito diferente de colocar a culpa na pessoa.
E a liberdade, como é que fica?
Diante disso, eis que temos uma resposta àquela pergunta do deputado Trad -- “De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da neurociência no conceito de livre-arbítrio?”. A resposta: independentemente do determinismo, punir é correto e aconselhável na medida em que não fazê-lo equivale a permitir que o infrator prossiga agindo de forma socialmente indesejável. Em termos técnicos, a punição, ou a responsabilização, tem o efeito de alterar as relações de causa e efeito nas quais está inserido o comportamento criminoso.(2)
A neurociência explica as nossas escolhas?
Venho estudando a velocidade de processamento de informação (VP) de idosos saudáveis. Em termos cognitivistas, VP refere-se à velocidade com que a cognição recebe, organiza e interpreta informações. Em termos do senso comum, VP denota a velocidade com que pensamos. Pelo nível neurofisiológico, VP diz respeito à velocidade com que os potenciais de ação são conduzidos ao longo das vias neurais. Pergunto: a descrição neurofisiológica da VP explica as descrições do senso comum e da psicologia cognitiva? A resposta, “não”, permite falarmos do que alguns filósofos denominam pluralismo descritivo: a possibilidade de descrevermos um mesmo fenômeno sob diferentes níveis de análise (Pinto, 2007). Por essa perspectiva, a linguagem neurocientífica não é muito mais do que uma forma alternativa de se olhar para certos fenômenos. Vejamos, para clarificar o conceito, como Pinker aborda a escolha sob os níveis descritivos da neurociência e da psicologia intuitiva:
A experiência de escolher não é uma ficção, independentemente de como o cérebro funciona. É um processo neural, com a óbvia função de selecionar o comportamento segundo suas consequências previsíveis. [...] Você não pode sair dele [do funcionamento do cérebro] nem deixar que ele prossiga sem você, pois ele é você (Pinker, 2004, p. 243, destaque meu).
Os eventos neurobiológicos, uma vez sendo identificados aos eventos psicológicos, não podem ser tomados como a causa destes últimos. Exemplo disso é o caso dos potenciais de ação, cuja velocidade não causa/determina a velocidade do pensamento -- ambas as descrições são, em vez disso, recortes diferentes de um mesmo fenômeno. Mas o que, afinal, determina se o cérebro "escolhe" um comportamento ou outro? A propósito, uma escolha específica determina um comportamento público específico?
Permitam-me ser breve, porquanto já abordei questões parecidas em outro lugar. Mesmo que eventos neurais precedam comportamentos motores (como quando um assassino planeja uma execução e, depois disso, a concretiza), a relação entre esses dois eventos só pode ser apropriadamente entendida à medida que trazemos ao palco a história de relações de uma pessoa (que possui genes específicos) com o seu ambiente. Em outros termos, devemos recorrer à filogênese e à ontogênese se quisermos explicar por que uma pessoa faz umas ou outras escolhas. Essas parecem ser as fontes, as origens de quaisquer comportamentos. Se isso ficar claro, entenderemos por que, em certas situações, as pessoas pensam, sentem e fazem o que fazem. Se o deputado Trad tiver que se preocupar com alguma coisa, esta coisa não é o sistema nervoso central -- tanto menos um homúnculo imaterial. Colocar a culpa no cérebro não é muito diferente de colocar a culpa na pessoa.
E a liberdade, como é que fica?
Para se dimensionar o tamanho do estrago, basta entender que toda a justificação da imposição de uma pena criminal está fundamentada no livre-arbítrio, elemento central da culpabilidade. Se o que está se insinuando com a tecnologia da Neurociência, de fato, se confirmar, todo o edifício teórico das ciências penais estará sustentada em areia movediça (Trad, 2011).É verdade: não faz sentido falarmos de escolhas indeterminadas diante da afirmação do determinismo. Por outro lado, não vejo razão para muito desespero. Admitir o determinismo não implica em desconstruir todo um sistema penal. O que talvez possa ser feito é reformular certos premissas e conceitos básicos, podendo contudo, e se convier, manter boa parte daquilo que já é posto em prática. Como não queremos descartar toda a moralidade como sendo uma superstição, podemos tentar “descobrir um jeito de conciliar causação (genética ou não) com responsabilidade e liberdade” (Pinker, 1998, p. 66).
Para B. F. Skinner (2006/1974), fundador do behaviorismo radical, agir livremente não implica em agir indeterminadamente. Em uma entrevista concedida à revista Veja (1974), Skinner situa a liberdade na "soma dos esforços do homem para escapar das condições adversas do meio ambiente". Ser livre, pois, equivale a "poder controlar os elementos que nos controlam", bem como a agir sem coerção -- o que é geralmente acompanhado por respostas ou eventos comumente chamamos aprazíveis. Vale alertar que o mundo nos controla na mesma medida em que o controlamos; a direção da causação é, por assim dizer, retroativa, bidirecional – e isso exclui a ideia de que seríamos meros fantoches, ou vítimas de fatalidades.
Deve ser o seguinte: somos livres e responsáveis na medida em que, na ausência de coerção, podemos fazer escolhas e agir -- o que costuma ser acompanhado por sensações agradáveis. Mesmo que essas escolhas e ações sejam efeitos de um conjunto de causas, a responsabilização é legítima por se tratar de um recurso capaz de alterar o comportamento do indivíduo. Daí que indivíduos total ou parcialmente insensíveis ao efeito da punição não são formalmente responsabilizados por aquilo que fazem. Esse é o caso dos loucos, das crianças, dos animais e dos objetos inanimados (Pinker, 2004). Mas deve haver algo mais. Parece, por exemplo, que a expressão "liberdade de escolha" vem a calhar sob circunstâncias em que há não uma, mas duas ou mais possibilidades de ação que podem ser antevistas, ou premeditadas, por aquele que age. Isso explicaria por que crianças e loucos, que podem não possuir o repertório adequado ou socialmente desejado para certos contextos, recebem eventualmente a "carta branca". No entanto, a aquisição de valores e princípios é um processo determinado, e o comportamento moral que dali se desdobra deve ser entendido enquanto tal.
Em tom de reflexão, fiquemos com os seguintes excertos tecidos pelo cognitivista Pinker e pelo behaviorista Skinner:
Um ser humano é simultaneamente uma máquina e um agente livre senciente, dependendo do objetivo da discussão, assim como ele também é um contribuinte do fisco, um corretor de seguros, um paciente do dentista e noventa quilos de lastro num avião da ponte aérea […]. A postura mecanicista [que é determinista] permite-nos entender o que nos faz funcionar e como nos encaixamos no universo físico. Quando essas discussões se esgotam no fim do dia, voltamos a falar uns dos outros como seres livres e dignos (Pinker, 1998, p. 68).
Se continuarmos a castigar nossos semelhantes em nome do conceito de “homem autônomo”, simplesmente estaremos perpetuando o sistema de provocar tipos de comportamento desejáveis através de técnicas punitivas. O problema é que temos medo de procurar soluções diferentes – soluções que implicariam a aceitação de que é o meio ambiente a raiz causal do comportamento, e não a moral tradicional (Skinner, 1974).
Notas
(1) Boa parte das conclusões que expus ao longo deste texto foi fruto de excitantes discussões com meus colegas analistas do comportamento belorizontinos, a quem devo consideração e gratidão por todo o ensinamento e carinho. Gostaria também de agradecer ao Cláudio Drews, por quem tive acesso ao artigo, e, em termos de revisão, aos meus amigos Ramon Cardinali e Júnio Rezende.
(2) Mas a punição não é a medida mais efetiva em termos de modelar o comportamento moral (ou não o é isoladamente). Valorizar/recompensar comportamentos socialmente desejáveis deve ser uma estratégia muito mais efetiva. Falei um pouco a respeito disso por aqui, ainda no ano passado.
Referências
- Pinker, S. (1998). Como a Mente Funciona. São Paulo: Companhia das Letras.
- Pinker, S. (2004). Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das letras.
- Pinto, P. R. M. (2007). O reducionismo impiedoso de John Bickle e seus problemas. In: Broens, M. C., Coelho, J. G., & Gonzales, M. E. Q. Encontro com as Ciências Cognitivas. São Paulo: Cultura Acadêmica.
- Skinner, B. F. (2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1953.
- Skinner, B F. (1974). Um Pensamento Polêmico. Revista Veja, no. 316, pp. 3-6.
- Trad, F. (2011). Direito Penal em apuros -- a Neurociência bate em sua porta! Em: http://www.msnoticias.com.br/?p=ler&id=62919
No meu ponto de vista e no de Skinner (Walden 2, Para além da Liberdade e da Dignidade), o sistema jurídico poderia sofrer uma reformulação, atuando muito mais como planejador de contingências sociais adequadas que propiciem comportamentos adequados e punir comportamento inadequados, do que como agentes "responsabilizadores", pois o próprio responsabilizar é relativo a um "homúnculo".
ResponderExcluirAs consequencias de uma análise cientifica do comportamento no meu modo de ver, faria ruir inumeras instituições sociais baseadas em conceitos abstratos como Livre-Arbítrio, Vontade, e etc.. E traria no lugar delas, novas agências mais adequadas ao novo entendimento sobre o comportamento humano.
Mas vc está certo em afirmar que o determinismo não nos exime de melhor controlarmos nosso ambiente, pois é sempre com ele que o organismo se relaciona e é a partir dessa relação que ele é modificado (comportamentalmente/fisiológicamente).
Primeiro, quero dizer que gostei muito dos teus comentários. São de excelente qualidade e realmente relevantes para as questões levantadas pelo Dep. Trad.
ResponderExcluirMas há alguns pontos que, creio eu, pedem alguma clarificação...
1. "Mas os eventos neurobiológicos, uma vez sendo identificados aos eventos psicológicos (ou caso sejam vistos como eventos que co-variam com o que chamamos subjetividade), não podem ser tomados como a causa destes últimos."
Aqui, seria interessante uma definição de eventos psicológicos e de subjetividade. Se eventos psicológicos são eventos cognitivos, não seriam estes a interação de um sistema nervoso com o ambiente, mediada pelos órgãos dos sentidos e motores? O agente modifica o ambiente e, por sua vez, é modificado pelo ambiente, inclusive em nível neurobiológico (i.e., a falta continuada de exposição ao Sol diminui os níveis de dopamina; aprender uma nova linguagem estimula fatores neurotróficos; etc). Se for assim, e tomarmos estes eventos enquanto grupos, eventos neurobiológicos estão contidos (e são constituintes/condições necessárias) dos eventos psicológicos.
Não sei se esta seria a definição que darias para os eventos psicológicos... Mas acho que é uma definição se faz útil ali, justamente por causa da evocação do termo *subjetividade*, que também pede uma definição.
O que é a subjetividade?
ResponderExcluirPessoalmente, penso que subjetividade nada mais é do que as redes/conexões neurais que a pessoa já tem (ou seja, a forma com que seu cérebro se configurou devido à genética, que lhe permite um grau maior ou menor de apreensão dos fenômenos do ambiente; juntamente com aquilo que o ambiente permitiu que se desenvolvesse, com estímulos e nutrição e proteção adequados ou não; juntamente ao que ela pode apreender do ambiente, suas memórias, aquilo que está codificado), mais seu corpo como um todo. Afinal, uma pessoa que não possui um braço ou uma perna, ou mesmo alguém que é canhoto - como eu, em determinadas situações irá ter de encontrar uma solução própria/subjetiva.
Se assim for, eventos neurobiológicos são condição (ainda que não sejam, por si, causa) para eventos psicológicos e até pela subjetividade do indivíduo.
Vou tentar ilustrar algo sobre a escolha... Pessoas corticalmente cegas acreditam ser incapazes de tomar certas decisões como, por exemplo, colocar uma carta na horizontal ou na vertical em uma fenda da qual não conhecem conscientemente a orientação, contudo ao tentarem executar a tarefa, conseguem acertar -- fenômeno conhecido como blindsight.
Outro exemplo poderia ser: um indivíduo que nasceu em uma ilha remota é colocado diante da opção de três lanches: um pedaço de peixe cru, um pedaço de uma fruta de sabor azedo e um pedaço de chocolate. O indivíduo, que já comeu peixe cru e a fruta azeda, acaba optando por um dos dois, mas não escolhe o chocolate pois não faz a menor ideia de que gosto tem aquele quadradinho preto. Mas que isso, se for um indivíduo que sempre comeu o tal do peixe cru e a fruta azeda, ele pode até achar que está escolhendo entre duas ótimas opções, nem considerando o chocolate, ao qual ele desconhece.
ResponderExcluirIndo um pouquinho além do meu exemplo, imagine um indivíduo que tem a opção do peixe cru, da fruta azeda, ambos bem ao alcance da vista, e também *poderia* optar pelo chocolate, mas este está fora de sua vista e ninguém o informou que havia esta opção. Imagine que o indivíduo odeia peixe cru e fruta azeda, mas se vê obrigado a escolher entre um dos dois. Poderíamos culpá-lo por não escolher o chocolate?
Fazendo um salto admitidamente longo, podemos imaginar que alguém com problemas de ordem neurobiológica para controle de impulsos é como a pessoa corticalmente cega, que até poderia não tomar certa ação, mas não se vê capaz de não tomá-la.
E fazendo outro salto longo, com relação aos exemplos do chocolate, podemos imaginar que alguém que só conhece a violência e que foi tratado com violência a vida inteira, em muitas situações irá agir com violência por não conhecer outras opções, ainda que elas existam. Ou mesmo sabendo de outras opções, estar tão acostumado com a violência que esta lhe pareça a opção mais razoável, por mais absurdo que pareça para outras pessoas.
Obrigado pela participação, Marcos e Cláudio.
ResponderExcluirMarcos, concordo que o planejamento de contingências para a diminuição da criminalidade deve ser mais efetivo no momento em que levamos em conta um entendimento científico/tecnológico do comportamento humano.
Cláudio, é verdade: eu poderia ter definido "eventos psicológicos" e "subjetividade". O primeiro é muito amplo e o segundo estaria contido nele. Por eventos psicológicos eu falo das "funções cognitivas" e da "sensibilidade" (o ver, o ouvir, o sentir etc.). Sensibilidade, pois, equivaleria à subjetividade.
Há um tempo atrás, não me lembro até quando, eu tratava o cérebro como a causa dos eventos psicológicos. Recentemente, no entanto, tenho assumido uma postura fisicalista não-reducionista, pela qual assumo que "descrições psicológicas se referem a estados neurológicos sob uma descrição mental; descrições neurológicas se referem a estados psicológicos sob uma descrição física" (Abrantes, 2007). Dessa forma, Cláudio, eu não sei se poderíamos dizer que os eventos neurobiológicos são condição para os eventos psicológicos, visto ambos serem identificados. Se assumimos que sim, que são condição, acho que também teríamos que dizer o contrário: os eventos psicológicos são condição para os eventos neurobiológicos.
Sobre as escolhas, não poderíamos culpá-lo por não ter escolhido o chocolate, de vez que este não estava disponível em seu campo de visão. Nos outros exemplos, poderíamos responsabilizar os indivíduos no sentido de tentar fazê-los se comportar de uma forma diferente. Se isso não for viável (não sei, p. ex., se pessoas com blindsight poderiam aprender que são capazes de fazer certas coisas [sem contudo se SENTIREM capazes] e, por isso, fazê-las -- comportamento governado por regras), não sei se poderíamos culpá-los. Acontece que a gente acredita que o comportamento criminoso é remediável e que, além disso, sua punição "serve de exemplo" para terceiros (política da dissuasão).
Acho termos como responsabilidade, culpa, direito, deveres, etc. Antiquados para uma instituição que se baseie na análise cientifica do comportamento (levando em conta as determinações biológicas, ontogênicas e sociais)
ResponderExcluirEssa agencia deveria se focar objetivamente no comportamento a ser instalado, mantido e extinto.
A pessoa não é culpada pelo que faz, ela é simplismente um locus onde as multiplas variáveis se cruzam a ponto do evento acontecer.
A pessoa não é um iniciador (nem sua mente ou cérebro) ela é apenas um teatro onde as determinações são encenadas.
Punir alguem com prisão ou violência baseado em "Responsabilidade" ou "Culpa", pra mim é tão irracional quanto chutar a mesa porque vc esbarrou o dedinho do pé nela, ou bater no computador quando este não liga.
Agora se a punição tiver uma função de modificação de comportamento, ou mesmo de exemplo como o Daniel bem disse (quanto a isso a controversias da eficacia da punição) ai sim ela se justificaria como estratégia de modificação de comportamento.
Daniel,
ResponderExcluirEsta entrevista do SKINNER está disponível na rede?
Marcos, creio entender sua crítica. Culpa, responsabilidade, direito e deveres não são coisas concretas do mundo, e portanto não seria coerente dizer que as possuímos. Mas talvez possamos dizer de um comportamento responsável, um comportamento moral -- algo como rotular uma classe de respostas específicas que produzem um efeito específico. Pode parecer que punimos porque uma pessoa é irresponsável; mas de toda forma nossos "motivos" para fazê-lo dizem respeito à tentativa de fazer extinguir um ou uns comportamentos socialmente "indesejáveis".
ResponderExcluirPor outro lado, por certo teríamos um sistema regulador mais eficiente no momento em que se baseasse nos princípios que regulam o comportamento humano.
Paulo, você pode acessar a entrevista por aqui: http://www.redepsi.com.br/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=251
Abraços.
Prezado Daniel,
ResponderExcluirQuando se fala em lívre-arbítrio o senso-comum tende a imaginar um algo "de fora do corpo" ou mesmo fora de toda a realidade física (um espírito talvez) pois só assim concebem a liberdade de escolha e de ação. O materialismo ou fisicalismo tendem a enxergar o homem como uma máquina avançada. Uma máquina que pode pensa, age, quer, se responsabiliza, mas ainda assim, uma máquina, pois todos os exemplos de ações podem ser identificados com processos físicos que, por sua vez, foram fisicamente causados. Que liberdade pode haver para tal máquina? Consequentemente, que responsabilidade?
Porém, ainda que o homem seja uma máquina e diversos destes conceitos, hoje abstratos, sejam identificados com processos físicos, isto não significa que não haja espaço para uma liberdade e, consequentemente, para uma ética. Há uma liberdade, mas esta não é absoluta. Mesmo uma máquina pode se auto programar com base em inúmeros fatores genéticos e ambientais. Nossas escolhar são limitadas mas não poucas.
Essa liberdade, ainda que limitada, nos habilita a fazer julgo de valor e ser objeto de julgo. Assim como um carro ou computador pode ser rápido, eficiente, confiável, um organismo pode ser generoso, valoroso, amoroso etc. Mesmo não sendo tais julgos absolutos, eles permitem que constituamos uma ética própria. Se pode haver liberdade (ainda que não absoluta) pode haver ética. Se pode haver ética, pode hver responsabilidade, culpa, direitos e deveres. Estes podem sim, como se propôs, ser revistos em virtude de novas concepções, mas não creio que devam ou possam ser extintos.
Abraço e parabéns pelo blog!
Caro Carlos,
ResponderExcluirTambém acho que o determinismo não nos impede de falarmos de liberdade e responsabilidade. No entanto, proponho que esses termos podem também ser vistos e descritos segundo abordagens fisicalistas. Em suma, um sistema moral baseado na liberdade e na responsabilidade pode ainda existir, mas talvez pudéssemos redefinir o que esses termos significam, bem como levar em conta os princípios que regulam o comportamento para fundamentar uma prática jurídica mais efetiva.
Carlos, eu não entendi bem o que você quis dizer com "liberdade limitada". Poderia desenvolver mais esse ponto?
Obrigado pela participação. Um abraço.
Pelo visto o blogger não vai (ou vai demorar a) colaborar restaurando os comentários. Bem, se ainda lembra de nossa conversa, o que entendo por "liberdade limitada" não é nada mirabolante, é apenas consequência da idéia de que somos, em princípio fisicamente causados, o que limita nossas opções. Um processo físico interno meu pode até impedir um outro processo de concretizar-se (posso resistir à tentação causada por desejar alguém) mas meu desejo estará sempre limitado por certos fatores também fisicamente causados (em geral, humanos desejam humanos).
ResponderExcluirAbraços e obrigado pela visita em meu site. Espero que tenha gostado.
Ah, sim, compreendi, Carlos. E é verdade: nossas possibilidades de ação estão restritas às relações de causa e feito do mundo. Isso é diferente da noção de uma liberdade indeterminada.
ResponderExcluirPassei os olhos em dois dos seus textos. Gostei bastante. Mais tarde voltarei lá e apreciarei outros textos com mais atenção. (A propósito, tive problemas ao tentar colocar seu blog na minha lista de favoritos. Sabe o que pode ser?)
Um abraço. Obrigado pela visita.
Daniel,
ResponderExcluirImagino que você esteja se referindo à dificuldades em colocá-lo em um leitor RSS, de feeds ou algo assim? Pode me dar mais detalhes da dificuldade? Você não é o primeiro que me comenta isso mas até agora ninguém me deu maiores detalhes e por isso não consegui identificar se há algum problema mesmo e qual é.
Abraço.
Eu fiquei pensando...
ResponderExcluirE quanto a um psicopata, cuja arquitetura cerebral está alterada desde o nascimento à ponto de agir como age? E pior, com estímulos ambientais certos, o indivíduo pode se tornar o pior tipo de psicopata, o que mata impiedosamente. Será que não podemos dizer que nesse caso específico, o que está determinando o comportamento é a própria natureza biológica do seu cérebro, sem ter tanto papel a ser destinado ao ambiente?
Excelente questão, Felipe. Mesmo que digamos que um evento neural atípico, talvez determinado geneticamente, preceda um comportamento agressivo, ainda precisamos explicá-lo. O joão-de-barro pode ser "geneticamente determinado" a construir ninhos de barro, mas isso não acontece caso não haja barro. O mesmo pode se dizer dos reflexos, como o da pupila e o da patela, que não existiriam na ausência de estimulação adequada (ambiente). Nesse caso, os eventos neurais são o "elo do meio", ou apenas o pedaço, de um comportamento a ser explicado. Podemos até dizer que diferenças genéticas facilitam o desenvolvimento diferencial do comportamento moral, mas isso não exclui o papel do ambiente nesse desenvolvimento e na ocasião para a emissão desse comportamento.
ResponderExcluirObrigado pela participação. Vamos conversando...
Concordo com tudo que vc falou. Eu também entendo essa questão nesses termos. O problema é que a área cerebral afetada em um psicopata está relacionada a aspectos muito básicos da interação social, como a emoção e a racionalidade. E como existir sem se relacionar pelo menos com um pequeno grupo de pessoas é quase impossível, vemos que o psicopata - quando não se torna algo como um serial killer - acabe se tornando o tipo de pessoa aproveitadora, sem escrúpulos, megalomaníaca, e muitas vezes criminosa mesmo, apesar de matar só na minoria dos casos. Nesse sentido, acho que a própria "maquinaria" que é a base física para o desenvolvimento de habilidades o interagir social, está comprometida, ou seja, as relações com o ambiente à nível basal já se darão de forma alterada. Uma pessoa que simplesmente não tem emoção e tem um predomínio anormal da racionalidade já enxerga o seu exterior de forma diferente, mesmo que não tenha uma interação, um tipo de evento ambiental que engatilhe esse comportamento.
ResponderExcluirAcho que é a mesma coisa com autistas. Independentemente do ambiente, eles já apresentam uma constituição cerebral diferente que acaba influenciando na própria forma como o ambiente age neles. Nesse tipo de condição, acho que o ambiente teria um papel mínimo.