No primeiro texto desta série, critiquei a alegação de que o modelo behaviorista clássico de explicação do comportamento, a tríplice contingência (estímulo, reposta e consequência [S:R-C]), "coloca o cérebro entre parênteses". Como procurarei novamente demonstrar, é possível considerar a atividade do cérebro em uma contingência de três termos, embora o behaviorista raramente o faça. Mas, afinal de contas, ele deveria fazer isso? Se deveria, e se o modelo SORC não precisa ser adotado, como seria uma "versão neuropsicológica" da tríplice contingência?
O modelo de análise SORC (Haase, 2011) é composto pelo estímulo antecedente (S), as respostas cerebrais (O), o comportamento observável (R) e uma consequência (C). |
A neuropsicologia propõe-se a estudar as relações do cérebro (neuro-) com a mente e o comportamento (-psicologia).
Por isso, um teste neuropsicológico é um instrumento que fornece dados
sobre esses três domínios: cérebro, mente (ou os processos psicológicos)
e comportamento (ou as ações observáveis de um indivíduo).(1) O Winconsin Sorting Card Test (WSCT),
por exemplo, mede (entre outras coisas) tanto a flexibilidade
psicológica/comportamental como a integridade do córtex pré-frontal. Ao
lançar mão do WSCT, o neuropsicólogo pode partir dos dados
comportamentais para inferir os funcionamentos psicológico e
pré-frontal de um indivíduo, embora ele possa também partir dos dados
neurológicos (como uma lesão detectada numa tomografia computadorizada) para
verificar os prejuízos psicológicos e comportamentais esperados. Nas mãos
de um psicólogo sem formação em neurociência, os testes
neuropsicológicos teriam alguma utilidade?
Mesmo
que não sejam construídos primordialmente para abordar questões
neurobiológicas, é indubitável que os testes psicológicos podem fornecer
dados sobre o funcionamento cerebral. Esses testes não são considerados
neuropsicológicos apenas em razão da perspectiva de análise
utilizada pelos psicólogos: a perspectiva psicológica/comportamental. Se
são encontradas relações interessantes entre o desempenho em um teste
psicológico e o funcionamento cerebral, podemos passar a concebê-lo como
um instrumento neuropsicológico (o que parece ter acontecido com
o Dígitos e o Semelhanças, subtestes do WAIS/WISC-III). Mas nada impede
que um psicólogo use um instrumento neuropsicológico para avaliar
exclusivamente os domínios da mente e do comportamento (aberto). Sem fazer
referência ao córtex pré-frontal, esse psicólogo poderia avaliar a
impulsividade e a tomada de decisão de seu cliente com o Continuous Performance Task e o Iowa Gambling Task, respectivamente. Impulsividade e tomada de decisão são fenômenos psicológicos/comportamentais, e seu estudo e avaliação não precisam necessariamente estar relacionados ao cérebro.
Ao
colocar o cérebro entre parênteses, o psicólogo não está negando sua
participação nos fenômenos comportamentais. O biólogo pode fazer o mesmo
com os fenômenos químicos ao estudar processos biológicos, e o
sociólogo pode fazer isso com os fenômenos psicológicos ao estudar
fenômenos sociais. No entanto, estudos biológicos que consideram as minúcias dos
processos químicos podem ser denominados bioquímicos, e estudos psicólogos cujas análises consideram as perspectivas psicológica e cerebral podem passar a ser considerados neuropsicólogos. Esse é o ponto em que as linhas se cruzam; esse é o campo da interdisciplinaridade.
A interdisciplinaridade científica é desejável por diversas razões, mas isso não dissolve a independência
de cada ciência. Pelo que entendo, uma ciência é independente à medida
que estabelece seu objeto de estudo particular e dispõe de métodos
próprios para estudá-lo -- podendo então compreender seus processos,
prevê-los e alterá-los. Assim, o psicólogo que lança mão de testes para
avaliar a mente e o comportamento está gozando de sua "independência
disciplinar", e isto está longe de configurar um problema. Um problema
para a psicologia em geral seria evitar se envolver com as
ciências do cérebro. Entretanto, vemos através da Neuropsicologia
Cognitiva, da Análise Biocomportamental e da Neuropsicanálise que os
cognitivistas, os behavioristas e até mesmo os psicanalistas estão se
esforçando para sair de seus guetos. Como costumo assinalar, creio que
estabelecer esses diálogos seja importante para garantir o
desenvolvimento e a sobrevivência de uma abordagem.
O cérebro e o analista do comportamento
A
atuação do analista do comportamento não precisa estar ancorada na
neurociência. Entender razoavelmente o funcionamento do cérebro poderá
eventualmente ajudá-lo a tomar decisões importantes nos contextos
clínico e educacional, por exemplo, mas isso não o
obriga a preencher suas análises com variáveis neurobiológicas. Em vez
destas, uma tríplice contingência típica é composta por variáveis
ambientais (antecedentes e consequências) e por respostas abertas
(ações) e encobertas (sentimentos e processos intelectuais) de um
indivíduo. Na maioria dos casos, esses componentes de análise são o
bastante para que suas intervenções sejam implementadas e para que suas metas
terapêuticas sejam alcançadas.
Quando um behaviorista se debruça sobre a neurobiologia do comportamento, ele está começando a se comportar como um neuropsicólogo, ou talvez como um analista biocomportamental. Entretanto, se ele decidir estudar e considerar o cérebro em suas análises, ele não precisará abrir mão da tríplice contingência. Em vez disso, ele poderá preencher seu segundo termo (R) com as variáveis neurobiológicas, preferencialmente ao lado das respostas tipicamente consideradas. Ademais, o primeiro e o terceiro termos (S e C) poderão ocasionalmente se referir aos estímulos característicos de um teste neuropsicológico.
Quando um behaviorista se debruça sobre a neurobiologia do comportamento, ele está começando a se comportar como um neuropsicólogo, ou talvez como um analista biocomportamental. Entretanto, se ele decidir estudar e considerar o cérebro em suas análises, ele não precisará abrir mão da tríplice contingência. Em vez disso, ele poderá preencher seu segundo termo (R) com as variáveis neurobiológicas, preferencialmente ao lado das respostas tipicamente consideradas. Ademais, o primeiro e o terceiro termos (S e C) poderão ocasionalmente se referir aos estímulos característicos de um teste neuropsicológico.
A tríplice contingência (S:R-C) pode comportar respostas neurobiológicas paralelamente (/) às respostas (abertas e encobertas) tipicamente consideradas. |
Colocar esses dois grupos de variáveis lado a lado é importante por pelo menos três motivos: 1) é patentemente incorreta a noção de que a atividade do cérebro causa o comportamento encoberto (planejar, sentir medo, decidir etc.); 2) é aparentemente insustentável a redução
do último ao primeiro; e 3) o funcionamento neural é um comportamento
como qualquer outro. Desenvolvi brevemente o primeiro e o terceiro
pontos no primeiro texto desta série, e acho que será importante eu dizer alguma coisa sobre o segundo.
Dividir esses dois grupos de variáveis não é o mesmo que pressupor que suas naturezas são distintas. Adotar um dualismo de perspectivas (a objetiva e a subjetiva), e não um dualismo de substâncias
(a material e a imaterial), é uma postura epistemológica complexa e às
vezes controversa, mas pode evitar a geração de alguns problemas. Como
já discuti noutro lugar, não faz muito sentido afirmar que o cérebro percebe, planeja e toma decisões
quase na mesma medida em que não faz sentido dizer que uma mão é
agressiva e que o motor de um carro é veloz. Skinner diria que não é o
cérebro quem faz essas coisas, e sim a pessoa; e eu acrescento que, se não assumíssemos a perspectiva
dessa pessoa, não faria muito sentido noções como sonho, planejamento e
decisão -- e nem qualquer outra noção comportamental que permeie a perspectiva subjetiva.(2) Em postagens futuras, pretendo desenvolver essa ideia em pormenores.
Por mais que o cérebro possa parecer um bicho de sete cabeças -- ou um órgãos de sete sistemas --, não há nada que ocorra em suas entranhas que não possamos, a princípio, enxertar numa tríplice contingência (o modelo SORC é dispensável). O analista do comportamento não precisa, em boa parte de suas atuações, fazer referência às condições cerebrais de seus clientes. No entanto, isso não quer dizer que conhecer a perspectiva neurobiológica do comportamento encoberto seja irrelevante. Pelo contrário, esse conhecimento pode ser decisivo na condução e/ou encaminhamento de alguns casos e é imprescindível para os analistas do comportamento que desejam dialogar com a neurociência.
Por mais que o cérebro possa parecer um bicho de sete cabeças -- ou um órgãos de sete sistemas --, não há nada que ocorra em suas entranhas que não possamos, a princípio, enxertar numa tríplice contingência (o modelo SORC é dispensável). O analista do comportamento não precisa, em boa parte de suas atuações, fazer referência às condições cerebrais de seus clientes. No entanto, isso não quer dizer que conhecer a perspectiva neurobiológica do comportamento encoberto seja irrelevante. Pelo contrário, esse conhecimento pode ser decisivo na condução e/ou encaminhamento de alguns casos e é imprescindível para os analistas do comportamento que desejam dialogar com a neurociência.
Notas
(1)
Essa é a maneira tradicional de se descrever o objetivo da
neuropsicologia. O behaviorista radical médio possivelmente apresentará
algum incômodo com respeito a essa definição de comportamento e à
postulação de uma mente (ou de seus processos).
(2)
As discussões recentes que travei com meu xará Daniel Grandinetti foram
importantes para eu perceber que muitos behavioristas radicais não
percebem ou não tratam essas duas perspectivas de análise com seriedade.
Para compreender melhor o que alguns teóricos denominariam "problema da
consciência", veja "Consciência verbal, não-verbal e fenomênica: uma proposta de extensão conceitual no behaviorismo radical" (Zilio, 2011).
Daniel, um post antiguinho meu falando sobre coisas parecidas
ResponderExcluirhttp://funcionalanalise.blogspot.com.br/2011/04/o-cerebro-digo-o-organismo-para-o.html
Muito esclarecedor seu post!
ResponderExcluirhttp://leticiapsicologa.blogspot.com