sábado, 25 de dezembro de 2010

Natal, ceticismo e religiosidade

Antes de ontem (23 de dezembro), no tardar de uma confraternização, convocaram-me para participar de uma discussão informal sobre ceticismo e religiosidade. Uma das debatedoras, que defendia a hipótese da existência de Deus, acusava-nos -- os ateus --, em razão de "negarmos a existência de coisas simplesmente por não podermos senti-las", de prepotentes. Asseverou, ainda, que usamos apenas cerca de 10% do nosso cérebro, e que por isso seríamos ignorantes em relação a uma infinidade de eventos e entidades do mundo -- inclusive a respeito de Deus.

Para o bem da relação e da ocasião, dediquei-me à assertividade e, na medida do possível, à condescendência. Apesar disso, não evitei de asseverar que, em geral, parece haver mais prepotência embebida em posturas religiosas do que em posturas céticas. Pelas lentes do cristianismo, por exemplo, nós, seres humanos, fomos criados à semelhança de Deus, O criador de todo o universo. Para muitos, somos o propósito e o centro de todas as coisas, bem como a única espécie dotada de alma e, portanto, digna de uma vida espiritual infindável. Ao lado disso, qualquer prepotente desconfiança dos ateus diante da possibilidade da existência de Deus acaba ficando minguada.

A respeito da suposta capacidade intelectual humana inutilizada, devo tecer três considerações. Primeiramente, todo o nosso encéfalo está em constante atividade; não há folga sequer enquanto dormimos. Em contrapartida, não é equivocada a ideia de que podemos aprimorar as nossas aptidões intelectuais. O efeito Flynn, conforme discuti outrora, é uma evidência disso. O aumento da inteligência (isto é, o aumento da capacidade de aprendizagem, de  raciocínio e, com efeito, de resolução de problemas), por outro lado, não implica em mais atividade neural. Podemos, no máximo, dizer de potenciais e estilos de raciocínio diferenciados. Em suma, a suposição de que usamos apenas 10% do nosso encéfalo é um mito.

Devo, contudo, concordar que realmente somos limitados acerca daquilo que podemos compreender do universo. Como asseverou McGinn (citado por Abrantes, 1994),

não deveria nos surpreender a descoberta de que nem todo aspecto do mundo natural seja acessível aos nossos poderes de compreensão. Nós não esperamos que outras espécies, que resultaram da evolução, sejam oniscientes; portanto, por que assumir que a nossa inteligência tenha evoluído com a capacidade de resolver qualquer problema que possa ser colocado a respeito do universo, do qual somos uma parte tão pequena e contingente? (McGinn, 1999)

Apesar disso, aceitar os nossos limites cognoscíveis não implica em aceitar a existência de Deus. Embora não possamos ver as alterações de pressão das moléculas dispostas no ar, temos evidências da existência desse tipo de evento (inclusive uma evidência experiencial, qual seja, o som). Quando tratamos de eventos e entidades divinas, transcendentais, não há sequer uma evidência ou mesmo uma pista verdadeiramente atraente que nos -- os céticos -- faça tratá-los com seriedade. Pelo contrário, e como listarei a seguir, há uma pilha de dados e inferências razoáveis que colocam contundentemente em questão a existência de uma ente onipotente, fonte de todas as coisas, em torno da qual o universo gravita e, pelo viés do cristianismo, da qual somos filhos e pela qual seremos julgados futuramente. Ei-los:

  • O universo existe há cerca de 15 bilhões de anos, iniciou-se com o Big Bang, é constituído por trilhões de galáxias e é possível que haja vida inteligente em algumas delas;
  • Todas as espécies evoluíram pela seleção natural -- e provavelmente a partir de ancestrais comuns (todos os demais animais, incluindo os extraterrestres, merecem uma vida espiritual perene?);
  • O grau de complexidade dos mamíferos (em termos de estrutura, cognição e comportamento) deve, em parte, à extinção dos dinossauros (o que foi, conforme sugerem as melhores hipóteses, um golpe do acaso);
  • Aqui, neste pálido ponto azul, inúmeras sociedades cultuaram e ainda cultuam inúmeros deuses, muitos dos quais não podem (pela lógica, não) co-existir (afinal, qual desses deuses seria O Deus, Aquele que tudo criou e a Quem deveríamos direcionar as nossas preces?);
  • As ideologias, inclusive as de caráter religioso, são produtos de intricadas relações sociais, cumprem determinadas funções e precisam ser suficientemente flexíveis para que possam se adaptar às mutantes demandas culturais e individuais (mas podem também persistir por contarem com seguidores cuja interpretação de suas [da ideologia] premissas é flexível);
  • A consciência experiencial (o sentido do "eu", o self) é um fenômeno configurado pela atividade do encéfalo, tendo como substrato basal os estados do corpo (o qual, como um todo, torna-se disfuncional com a incidência da morte);
  • O método científico é a forma mais efetiva de obtermos conhecimento a respeito de como o mundo funciona. Às religiões, diante dos dados oriundos da ciência, vêm restando cada vez menos eventos e entidades para -- insatisfatoriamente -- explicar.

Do Natal

Diante das considerações supracitadas, deve ter ficado claro o meu ceticismo em relação aos dois grandes ícones do natal: o Papai Noel e o menino Jesus. Primeiramente, temos evidências de que o Novo Testamento foi incontavelmente alterado desde a sua primeira publicação. O livro "O que Jesus disse? O que Jesus não disse?" (ed. Prestígio, 2006), de Bart D. Ehrman, expõe algumas dessas alterações e suas respectivas justificativas. Não poderíamos, portanto, crer na veracidade histórica dos acontecimentos nele relatados.

Em segundo lugar, parece estar claro que a essência da vida de Jesus Cristo já havia sido contada séculos antes do seu nascimento. Alvin B. Kuhn, em seu livro "Um renascimento para o cristianismo" (ed. Nova Era, 2006), assevera que boa parte dos acontecimentos, rituais, profecias e símbolos cristãos foram patentemente inspirados na mitologia egípcia (que, a propósito, era substancialmente embasada em leituras astrais), bem como os Dez Mandamentos contidos no Velho Testamento. Conforme dizem por aí, a pessoa e as façanhas de Jesus de Nazaré não passariam de plágio (inclusive a data do seu nascimento).

Em suma, provavelmente nunca houve uma comunicação direta entre Deus e a sua criação -- e provavelmente, aliás, Deus é uma entidade de natureza imaginária. Todo o bolo de crenças que compõe as religiões é inspirado em mitos de religiões adjacentes e/ou decadentes, em interpretações equivocadas de eventos, em delírios, em jogadas políticas e, é claro, em intuições de pessoas comuns. A inteligência humana parece trazer o preço da dúvida e da angústia perante a finitude e o desconhecido. Tentamos, com efeito, saná-las com os recursos intelectuais e tecnológicos de que dispomos. No meu entendimento, já estamos no momento de rever o que nos leva a celebrar o nascimento de um  semideus supostamente capaz de salvar as nossas supostas almas -- supostamente pecaminosas -- e que cuja história de vida e existência são dúbias. Dentro daquilo que percebo, o natal, apesar de ser uma data agradável -- sobretudo em razão dos presentes e da companhia dos parentes e amigos --, não passa de um mito.






Referência

  • Abrantes, P. (2004). Naturalismo em filosofia da mente. In: Ferreira, A., Gonzales, M. E. Q. & Coelho, J. G. Encontro com as Ciências Cognitivas. São Paulo: Cultura Acadêmica.

9 comentários:

  1. sabe a origem desse mito de que usamos apeanas 10% do cérebro?

    EUA, 1960.. médicos chegaram a conclusão de que, sobre condições extremas, uma pessoa pode pensar até 10X mais rápido.

    Logo, em condições normais, ela pensa apenas a 10% da velocidade limite (Essa porcentagem é sobre velocidade, e não sobre quantidade de áreas cerebrais não-exploradas, ou algo assim)

    Contudo, se uma pessoa operasse na velocidade limite a todo momento, certamente isso não acabaria bem, pois seria como andar apenas de 5a marcha no carro.

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  2. Eu não conhecia a origem desse mito, Alessandro. Já cheguei a pensar que poderia ser por causa da teoria freudiana do inconsciente, a imensa parcela da mente a que não temos acesso direto.

    Obrigado pela informação. Um abraço!

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  3. Sim.. o quebra-cabeça é: alguns necessitam da "religião" para explicarem os eventos e Se explicarem.. outros, da "ciência",.. o fato é que ambas fazem parte de uma "busca", a diferença é a forma de montar esse quebra-cabeça e também a forma como o concebemos.
    O grande engano de ambas é pensar que estão separadas de uma ideologia!
    E o maior tormento da Humanidade é lutar por soberania.. seja ela qual for.
    Falta RESPEITO tanto aos que PREGAM religião quanto aos que PREGAM ciência..
    Falta EDUCAÇÃO (de base, política, social) para DISCERNIMENTO dos interesses que estão imbuídos na Religião e na Ciência.
    Falta à Religião deixar de "ditar verdades" e à Ciência "reconhecer" que o que a move é a fé!
    Finalizando cito Einstein: "Não posso conceber um autêntico cientista sem essa fé profunda... A ciência sem religião é aleijada, a religião sem ciência é cega".

    Márcia Campos.

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  4. Daniel, vc é sempre elegante ao expor suas ideias. Alem de procurar se embasar em autores de reconhecimento.
    Poderiamos conversar muito a respeito deste assunto, tenho lido a respeito e nunca se sabe o que é real ou nao.
    Me incomoda um pouco tamanha preocupacao com esse assunto. Como vc sabe, fanatismo nao é o meu lugar.
    Agradeço pelo seu constante entusiasmo e dedicacao a qq assunto cientifico. Cosidere sempre o meu apoio.
    Abraços
    Karen

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  5. Excelente post, Daniel!

    Claro, conciso, assertivo e bem escrito.

    Eu teria também respondido prontamente à mulher que disse que a postura ateísta era prepotente, que ela era igualmente prepotente por rejeitar Vishnu, Zeus, Maomé e outros, e até mesmo por rejeitar a existência de fadas e duendes, simplesmente porque ELA não teve essa experiência nem tem evidência disso.

    Abraços

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  6. Ótimo texto, Daniel!
    Quanto a essa debatedora que vc comentou, que bobagem de argumento foi esse... Quando alguém fala tanta besteira desinformado assim, prefiro nem dar bola, por mais q seja dificil não falar nada em situações assim.

    Essa campanha do "It´s a Myth" é mt legal!
    um abraço,
    André

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  7. Iai Fòsca. Ótimo post, como sempre.
    (vou me atrever a comentar pela primeira vez)

    Bom, sobre o mito dos 10%:
    a Suzana Herculano, que trabalha divulgando a neurociência para o grande público, apresenta um artigo (estou sem a referência mas posso te passar depois) apontando para uma outra gênese deste mito. Tal relacionada com a época na qual considerava-se apenas os neurônios como células ativas do funcionamento nervoso e estes, por sua vez, através de medição simples, compunham apenas 10% do peso de todo o encéfalo (repito que depois posso lhe disponibilizar o artigo). Enfim, isso teria mudado após a descoberta da importância das células da glia.

    Em relação à discussão principal:
    vou ser covarde ao ponto de me abster à seguinte afirmação: o que move este ser chamado humano é uma forte inclinação a crenças - e não me refiro a crenças apenas no sentido religioso, mas sim - aquilo que acredita serem a verdades.
    Agora, não nos esqueçamos que cada conjunto de crenças que o indivíduo carrega consigo resultará em seus atos, que por sua vez acarretam conseqüências.

    "aceso, apaguado, aceso, apaguado, aceso, apaguado, aceso, apaguado, aceso. ufa!"

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  8. Obrigado pelos comentários, Leandro, André e Pedro.

    Não conhecia essa hipótese alternativa sobre a origem do mito dos 10%, Leandro. Bem interessante! Agora, quanto à premissa de que crenças resultam em atos, mais cognitivista, é bem atraente mas, dependendo da forma com é analisada, deficitária. Podemos discutir sobre isso depois...

    Um abraço a todos!

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  9. Por tudo o que estudei até hoje, e tendo contato com todos os argumentos do Dawkins, e tento em vista a arrogância e todos os malefícios que as grandes religiões vêm causando à humanidade ao longo da história, o ateísmo me parecia uma ótima conclusão... Até me deparar com um argumento do Bertrand Russell:
    "There is no logical impossibility in the hypothesis that the world sprang into being five minutes ago, exactly as it then was, with a population that "remembered" a wholly unreal past. There is no logically necessary connection between events at different times; therefore nothing that is happening now or will happen in the future can disprove the hypothesis that the world began five minutes ago."
    Desde então me defino como agnóstico (aquele que não sabe - mesmo - a realidade última das coisas).Quem sabe o que o futuro nos mostrará sobre a realidade? :D

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