Embora digam que a pressa é inimiga da perfeição, há contextos em que a velocidade anda junto com a eficiência. Esse parece ser o caso dos processos cognitivos -- ao menos em se tratando dos mais simples, elementares. Juntamente com a memória de curto-prazo, a velocidade de processamento de informação parece explicar boa parte da variância da capacidade cognitiva geral, a inteligência.
Memória
Conforme consta na Wikipédia, memória é a capacidade de adquirir (aquisição), armazenar (consolidação) e recuperar (evocar) informações. Existe uma porção de modalidades de memória. As mais clássicas são os pares 1) memória de curto-prazo e memória de longo-prazo e 2) memória declarativa e memória não-declarativa. A memória de curto-prazo, mais importante na ocasião deste texto, refere-se basicamente à capacidade de armazenamento provisório de informações. Essas informações, diretamente adquiridas do meio circundante (como estas palavras) ou recuperadas (evocadas) da memória de longo-prazo (como o significado destas palavras), permanecem temporariamente (segundos ou minutos) disponíveis no background cognitivo (digamos, na camada pré-consciente da mente), podendo ser imediatamente acessadas. O título deste texto, por exemplo, é um conjunto de informações que pode ser efetivamente resgatado desse depósito(1).
Somos, durante a vigília, ininterruptamente servidos pela memória de curto-prazo. O que comemos no café da manhã, a última conversa que tivemos, o que fizemos antes de começar esta leitura e a ideia geral do último parágrafo são informações que permanecem temporariamente, por um curto prazo, disponíveis para acesso, para ser evocadas, recordadas.
Somos, durante a vigília, ininterruptamente servidos pela memória de curto-prazo. O que comemos no café da manhã, a última conversa que tivemos, o que fizemos antes de começar esta leitura e a ideia geral do último parágrafo são informações que permanecem temporariamente, por um curto prazo, disponíveis para acesso, para ser evocadas, recordadas.
Diferentemente da memória de longo-prazo, a memória de curto-prazo é limitada em termos de sua capacidade de armazenamento. Por exemplo, certamente somos incapazes de armazenar e evocar imediatamente todas as palavras deste parágrafo. Devemos, talvez, recordar de apenas 6 ou 8 palavras -- as quais devem ficar disponíveis para acesso não mais do que por alguns segundos ou minutos.
Velocidade de processamento de informação, memória de curto-prazo e inteligência
A velocidade de processamento de informação (ou a velocidade em que a mente funciona) é uma variável geralmente mensurada por tarefas cognitivas elementares (ECT, do inglês elementary cognitive tasks). O desempenho nessas tarefas, que é baseado no tempo despendido para emitir uma resposta específica, tende a estar altamente co-relacionado à capacidade cognitiva geral, a inteligência (Deary et al., 2010).
Nesta ECT, o avaliando é orientado a pressionar, tão rapidamente puder, o botão correspondente ao estímulo numérico apresentado no visor ("Se aparecer o dígito 2, pressione o botão 2."). |
Quanto mais complexa for a ECT, tanto maior será a co-relação entre o tempo de reação medido e a inteligência (em termos de QI). O desempenho na ECT ilustrada acima, que requer que o avaliando escolha uma entre quatro alternativas de resposta (1, 2, 3 ou 4), co-relaciona-se mais altamente com a inteligência do que uma ECT simples (Der & Deary, 2006), que não envolve escolha (p. ex., "Pressione 0 sempre que qualquer estímulo aparecer no visor.").
Tarefas mais complexas demandam mais recursos cognitivos, sendo portanto mais adequadas para se estimar a inteligência (Flynn, 2009). Um desses recursos, a memória de curto-prazo, vem já há algum tempo ganhando a atenção dos cientistas cognitivistas. Em resumo, o desempenho em testes de inteligência depende em grande medida do quanto e de por quanto tempo podemos armazenar temporariamente as informações relevantes para a resolução da tarefa. Enquanto fazemos uma divisão de um numerador de três dígitos, por exemplo, precisamos alternar a nossa atenção entre este e o seu denominador (digamos, 612/18), as regras e os atalhos matemáticos necessários para efetuar a operação (evocá-los e executá-los) e os sub-resultados sequencialmente obtidos -- os quais são usualmente submetidos aos mesmos processos descritos anteriormente. Por recrutar muitas informações e constituir-se de muitos passos sequenciais, essa tarefa ameaça as capacidades de armazenamento (por sobrecarregá-la) e de manutenção de informação da memória de curto-prazo. Com efeito, a probabilidade de perda ou de confusão de informação é aumentada, e o desempenho na tarefa pode ser parcial ou totalmente comprometido.
Por outro lado, há uma relação inversamente proporcional entre a taxa de perda de informações e a velocidade com que estas são processadas. Vistas as limitações de espaço e de manutenção da memória de curto-prazo, um processamento mais rápido resultaria em menos perda de informações, e o desempenho em tarefas cognitivas seria significativamente melhor (Flores-Mendoza & Colom, 2006).
Vejamos, para ilustrar o esquema, a seguinte analogia. A permeabilidade do filtro de café restringe a taxa de passagem/drenagem de água quente. Se a despejarmos tão rapidamente que saturasse a capacidade de drenagem, algum líquido seria entornado, desperdiçado. Entretanto, um filtro de café cuja permeabilidade é maior conseguiria evitar que parte da informação seja perdida, digo, que parte da água entorne. Dessa forma, o aumento da velocidade de drenagem permitiria mais eficiência (isto é, menos perda de água quente) na passagem do café. Traduzindo a analogia, a velocidade de processamento de informação pode compensar a limitação de sustentabilidade e de espaço da memória de curto-prazo -- e isso significa mais eficiência na resolução de problemas.
Da etiologia da velocidade de processamento de informação
Embora possamos tomar a velocidade de processamento de informação como uma variável que explica parte do desempenho cognitivo geral, resta-nos ainda detectar as variáveis que a explicam (ou seja, desvendar a natureza do filtro de café cognitivo). No nível psicológico, sabe-se que a familiaridade com a tarefa é um fator facilitador. Por exemplo, adultos geralmente efetuam operações matemáticas mais rapidamente do que crianças, para as quais o mundo dos números ainda é uma novidade -- uma novidade ansiogênica, às vezes. A propósito, a disposição emocional e a atenção/concentração devem também ser variáveis elencadas. Contudo, e como estamos tratando de um aspecto cognitivo simples, elementar, o foco e o nível das pesquisas recentes têm sido neurobiológico.
A velocidade de processamento informacional, que deve refletir a eficiência do processamento neural (condução de potenciais de ação), parece ser explicada pela integridade da matéria branca encefálica, isto é, pela integridade dos prolongamentos axonais que conduzem o potencial de ação (Penke et al., 2010). Essa hipótese é sustentada por uma constelação de achados. Por exemplo, sabe-se que o tempo de reação e a inteligência declinam com a idade, sobretudo após os sessenta anos (Deary et al., 2010). Em idosos cuja cognição está levemente comprometida, os padrões de ativação sincrônica de áreas corticais anteriores e posteriores é significativamente distinto daquele verificado em jovens sadios (Waiter, 2008). Essas alterações são decorrentes não de perda neuronal, mas provavelmente da defasagem de mielina que reveste os prolongamentos axonais (Andrews-Hanna et al., 2007).
A bainha de mielina (myelin sheath), que reveste o axônio (axon), facilita -- torna mais rápida -- a propagação do impulso nervoso (a unidade informacional neurofisiológica). |
Em provisória conclusão, a velocidade de processamento de informação, altamente co-relacionada à inteligência e comumente medida através de tarefas cognitivas elementares, parece ser explicada pela integridade da matéria branca encefálica. Mais do que isso, algumas de suas medidas (como os tempos de inspeção e de reação com escolha) figuram como marcadores atraentes do envelhecimento cognitivo, podendo anunciar precocemente a instalação de quadros demenciais e, mais surpreendentemente, ser um dos melhores preditores de mortalidade aos setenta anos de idade (Deary & Der, 2005).
Nota
(1)
Termos como "adquirir", "estocar" e "recuperar" são utilizados
didaticamente. Não há, na verdade, um local no encéfalo -- ou na mente
-- no qual são depositadas informações; há, sim, mecanismos específicos,
paralelos e sequenciais de processamento cognitivo/neural cujo
trabalho influencia e é influenciado por mecanismos de níveis mais e/ou
menos amplos, gerais. Por outro lado, o uso desses "andaimes
intelectuais" -- como diriam os meus amigos behavioristas --,
provavelmente por refletirem certos padrões de funcionamento do
encéfalo, mostra-se cientificamente satisfatório e didaticamente
atraente.
Referências
- Andrews-Hanna, J. R. et al. (2007). Disruption of large-scale brain systems in advanced aging. Neuron 56, 924–935. In: Bishop, N. A., Lu, T., & Yankner, B. A. (2010). Neural mechanisms of ageing and cognitive decline. Nature, 464(7288), 529-35. doi: 10.1038/nature08983.
- Colom, R., Flores-Mendoza (2006). Armazenamento de curto prazo e velocidade de processamento explicam relação entre memória de trabalho e o fator g de inteligência. Psicologia: teoria e pesquisa, 222, 113-122.
- Der, G., & Deary I. J. (2006). Age and sex differences in reaction time in adulthood: results from the United Kingdom Health and Lifestyle Survey. Psychology and aging. 21(1):62-73. Available at: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16594792.
- Deary, I. J., Bastin, M.E., Pattie, A., Clayden, J.D., Whalley, L.J., Starr, J.M., Wardlaw, J.M. (2006a). White matter integrity and cognition in childhood and old age. Neurology 66, 505-512.
- Deary, I. J., Der, G. (2005). Reaction time explains IQ’s association with death. Psychological science : a journal of the American Psychological Society / APS, 16(1), 64-9. doi: 10.1111/j.0956-7976.2005.00781.x
- Deary, I. J., Der, G., Ford, G. (2001). Reaction times and intelligence differences: a population-based cohort study. Intelligence, 29, 389 - 399.
Deary I. J., Johnson W., & Starr, J. M. (2010). Are processing speed tasks biomarkers of cognitive aging? Psychology and aging, 25 (1), 219-28 PMID: 20230141 - Flynn, J. R. (2009). O que é inteligência? Porto Alegre: Artmed.
- Gregory, T., Nettelbeck, T., Howard, S., & Wilson, C. (2008). Inspection Time: A biomarker for cognitive decline. Intelligence, 36(6), 664-671. Elsevier Inc. doi: 10.1016/j.intell.2008.03.005.
- Penke, L., Maniega, S. M., Murray, C., Gow, A. J., Hernández, M. C. V., Clayden, J. D., et al. (2010). A general factor of brain white matter integrity predicts information processing speed in healthy older people. The Journal of neuroscience : the official journal of the Society for Neuroscience, 30(22), 7569-74. doi: 10.1523/JNEUROSCI.1553-10.2010.
- Waiter, G. D., Fox, H. C., Murray, A. D., Starr, J. M., Staff, R. T., Bourne, V. J., et al. (2008). Is retaining the youthful functional anatomy underlying speed of information processing a signature of successful cognitive ageing? An event-related fMRI study of inspection time performance. NeuroImage, 41(2), 581-95. doi: 10.1016/j.neuroimage.2008.02.045.
Gostei muito do texto, Daniel! Muito bacana a forma como vc usou analogias para facilitar o entendimento. Para um texto de divulgação ficou bem acessível e bem redigido! Não conhecia esse dado que vc apresentou sobre a predição de mortalidade aos setenta anos, muito interessante!
ResponderExcluirum abraço,
André
Daniel, viu esse texto que saiu no estadão?
ResponderExcluirhttp://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110224/not_imp683785,0.php
achei q o autor deste texto de divulgação caprichou na hora de redigir. Fica ai um exemplo para nós.
um abraço,
André
Obrigado pelas considerações, André!
ResponderExcluirNão tinha visto essa reportagem. Bem interessante! Curioso ver o hipotálamo como foco no estudo sobre memória. Sabe-se há bastante tempo que o hipoCAMPO tem papel crucial na consolidação da memória de curto-prazo, sobretudo através da atuação da proteína BDNF. Mas como a aprendizagem e a memória envolvem diversos sistemas, certamente o hipotálamo, importante para a aprendizagem mais banhada pelas emoções, figure como uma peça fundamental. Esse deve ser o caso do estudo que você citou.
Obrigado pela dica-de-leitura, André. Um abraço!
These are really fantastic ideas in concerning blogging.
ResponderExcluirYou have touched some nice things here. Any way keep up wrinting.
My website - grumpy cat